A cassação da outorga do título de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico (ONMC) a dois pesquisadores brasileiros gerou grande repercussão negativa entre sociedades científicas, membros da Academia e instituições de ensino e pesquisa, que denunciam perseguição e autoritarismo no meio.
Na sexta-feira (5), decreto assinado por Jair Bolsonaro retirou da honraria os nomes de Adele Schwartz Benzaken, diretora da Fiocruz Amazônia, e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, pesquisador da Fiocruz.
Marcus Lacerda conduziu um estudo no Amazonas em abril de 2020 que concluiu não haver benefícios na aplicação de altas doses de cloroquina no tratamento da covid-19, na contramão do que defende o governo Bolsonaro; Adele foi demitida em 2019 do departamento do Ministério da Saúde responsável por elaborar políticas referentes a infecções sexualmente transmissíveis, outra pauta controversa dentro de um Executivo que promove a desinformação e o combate a educação sexual.
“Fica evidente que o governo federal fez a cassação depois de saber que os dois cientistas renomados conduziam pesquisas cujos resultados contrariavam interesses de políticas governamentais, agindo como censor da pesquisa, sem o devido respeito à verdade científica e à diversidade”, critica a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
A Sociedade integra a Comissão Técnica que definiu os cientistas homenageados. O colegiado também é composto por três membros indicados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e três membros indicados pela Academia Brasileira de Ciências (ABC).
“Esse ato, inédito no país e típico de regimes autoritários, é mais um ataque à ciência, à inovação e à inteligência do país. Ciência e inovação estão sendo debilitadas por uma política econômica equivocada, que mira o horizonte imediato, com medidas que prejudicam o futuro do Brasil. Atitudes negacionistas, com ataques irresponsáveis à evidência científica, prejudicam o desenvolvimento nacional e afetam diretamente a saúde da população”, publicou a ABC em nota.
Politização da Ciência
A exclusão dos nomes aconteceu dois dias depois da publicação de outro decreto, que oficializou a láurea. “Todos foram surpreendidos pela nomeação oficial, pois ninguém recebeu alguma comunicação prévia”, comenta o professor José Vicente Tavares dos Santos, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS (IFCH), lembrando que as indicações haviam sido feitas em 2019. O docente, juntamente com outros 20 pesquisadores que receberiam a medalha, renunciou ao título em solidariedade aos colegas suprimidos.
“A homenagem oferecida por um Governo Federal que não apenas ignora a ciência, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não é condizente com nossas trajetórias científicas”, diz carta assinada pelos pesquisadores.
“Enquanto cientistas, não compactuamos com a forma pela qual o negacionismo em geral, as perseguições a colegas cientistas e os recentes cortes nos orçamentos federais para a ciência e tecnologia têm sido utilizados como ferramentas para fazer retroceder os importantes progressos alcançados pela comunidade cientifica brasileira nas últimas décadas”, acrescenta o documento.
“Embora com tristeza e agradecidos às sociedades científicas que nos indicaram ao mérito, não podíamos aceitar um título concedido por um governo federal Federal que sistematicamente tenta destruir as Universidades, a Ciência e a Tecnologia. Foi um ato de indignação em defesa do conhecimento e da liberdade acadêmica”, pontua o professor da UFRGS.
“As repetidas atitudes anticientíficas do governo federal no manejo da pandemia, os drásticos cortes no orçamento para Ciência e Tecnologia, e mais recentemente a exclusão por motivos políticos de dois colegas da lista de homenageados, não nos deixou outra alternativa senão a recusa da honraria”, acrescenta o professor Cesar Victora, da UfPel, que também declinou do título.
Em mensagem enviada ao presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich, o acadêmico José Israel Vargas, ex-ministro de Ciência e Tecnologia e criador da Ordem Nacional do Mérito Científico, declarou confiar que “ficaremos livres dos inimigos da Ciência, em particular do atual presidente da República, que é, como todos os autoritários, passageiro, como demonstra a história”.
Agressão ao livre pensar
Pesquisadores e professores eméritos da Fiocruz também se posicionaram contra mais esse ataque à Ciência nacional, sistematicamente enfraquecida por cortes de verbas e perseguições políticas desde a posse de Bolsonaro.
“Nosso país e nossa saúde pública não podem continuar sendo conduzidos por intermédio de atitudes negacionistas e do descrédito da ciência e das evidências científicas produzidas nas Universidades e Institutos de pesquisa brasileiros. A ciência brasileira é pautada pela ética e merece respeito”, afirma carta aberta.
“Quando um presidente da República expurga dois cientistas desta ordem, presenciamos não só uma ação mesquinha e abjeta, mas também uma agressão ao livre pensar”, manifestaram-se José Antonio Poli Figueiredo, pró-reitor de Pesquisa da UFRGS, e Jefferson Cardia Simões, vice-pró-Reitor de Pesquisa, que é membro da Academia Brasileira de Ciências e da ONMC.
O ANDES/UFRGS, sempre na defesa da Educação, da Ciência e da autonomia universitária, une-se à comunidade em repúdio a mais uma manifestação antidemocrática e reacionária do governo federal. Fora Bolsonaro e Mourão!
Assinam a carta de renúncia (em ordem alfabética):
Aldo Ângelo Moreira Lima (UFC)
Aldo José Gorgatti Zarbin (UFPR)
Alfredo Wagner Berno de Almeida (UEMA)
Anderson Stevens Leonidas Gomes (UFPE)
Angela De Luca Rebello Wagener (PUC-RJ)
Carlos Gustavo Tamm de Araujo Moreira (IMPA)
Cesar Gomes Victora (UFPel)
Claudio Landim (IMPA)
Fernando Garcia de Melo (UFRJ)
Fernando de Queiroz Cunha (USP)
João Candido Portinari (Projeto Portinari)
José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)
Luiz Antonio Martinelli (USP)
Maria Paula Cruz Schneider (UFPA)
Marília Oliveira Fonseca Goulart (UFAL)
Neusa Hamada (INPA)
Paulo Hilário Nascimento Saldiva (USP)
Paulo Sérgio Lacerda Beirão (UFMG)
Pedro Leite da Silva Dias (USP)
Regina Pekelmann Markus (USP)
Ronald Cintra Shellard (CBPF)