Durante 48 anos Portugal viveu uma longa noite fascista. Hoje completam-se outros 48 anos de vida democrática.
Aquela longa noite nasceu em 1933 quando Salazar, um professor universitário, assume o cargo de presidente do Conselho de Ministros, força a aprovação de uma nova Constituição que elimina direitos civis e estabelece as bases de um estado corporativista, reacionário e reforça sua intervenção colonialista.
O fim do pesadelo nasce na madrugada do dia 25 de abril de 1974, quando jovens oficiais de baixas patentes, em sua maioria capitães, se revoltam pelas condições que lhes eram impostas nas guerras coloniais para as quais eram enviados, em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau ou Cabo Verde.
A transformação de uma revolta de jovens oficiais em uma revolução com o povo na rua incentivando a que os objetivos dos revoltosos se ampliassem para a invasão da sede da PIDE, a polícia política, ou a prisão de Marcelo Caetano, então primeiro-ministro, ou ainda a libertação dos presos políticos nas prisões de Caxias ou Peniche, é algo que só a famosa frase do um revolucionário de outra época pode explicar: a revolução é impossível, até que se torna inevitável.
O regime estava decadente, o país isolado e pária no conjunto das nações, a miséria assolava a classe trabalhadora, a violência política fazia parte do quotidiano, a resistência, em especial dos comunistas, persistia, mas muito afetada pelas prisões e exílios. Não se vislumbrava luz no fim do túnel até que tudo mudou.
A revolução de Abril abrigou um projeto não só de país, mas de sociedade e de relações humanas. Os ecos desse projeto ouvem-se até hoje em Portugal: uma escola pública de qualidade, para fazer face a taxas de analfabetismo na ordem dos 25% entre os homens e dos 40% entre as mulheres na década de 1960, situando-se hoje em cerca de 5%, ainda assim uma das mais elevadas da Europa em virtude desse déficit histórico; um sistema de saúde pública, estabelecido para que toda a população tivesse direito a cuidados de saúde primários gratuitos, escapando ao assistencialismo corporativo e religioso e à lógica de caridade e de dependências que encerrava; melhorias evidentes no nível de vida de uma porcentagem significativa da população que, particularmente nos centros urbanos, dependia de bancos alimentares para não passar fome; processos de organização laboral e de sindicalização, com conquista do direito à greve, décimo-terceiro e décimo-quarto salário, seguro de desemprego; o fim da guerra colonial/guerra de libertação, o início dos processos de descolonização e de estabelecimento de relações de igualdade entre Portugal e os países africanos de língua portuguesa; a libertação dos presos políticos e a conquista da liberdade de participação política; uma Constituição da República que, apesar das muitas revisões de que tem sido alvo por imposição dos partidos de centro e de centro-direita, preserva ainda no seu preâmbulo e na maioria dos seus artigos o espírito de Abril, servindo de último reduto ao assalto aos direitos conquistados pela Revolução de 1974; etc.
Por essas e por muitas outras razões, o dia 25 de Abril é, para a grande maioria dos portugueses, o feriado mais significativo do ano, assinalando esse “dia inicial inteiro e limpo” – nas palavras da poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen – que ainda hoje ilumina e nutre a sociedade portuguesa.
Essas conquistas não significam, todavia, que o projeto se tenha cumprido na totalidade. Na verdade, muito ficou por cumprir e é necessário que os ritos anuais de celebração não adormeçam o povo para o significado do projeto de Abril e a sua atualidade. Portugal segue sendo um dos países mais pobres da Europa, cada vez mais subjugado pelo neoliberalismo da União Europeia; o Ensino Superior é pago e a pesquisa é, a cada ano, objeto de mais e maiores cortes, sendo difícil de mascarar os 92% de projetos não financiados e os sucessivos cortes nas bolsas a todos os níveis; o nível de endividamento das famílias é elevado, fruto da ausência de políticas de proteção social em face à especulação das instituições financeiras; o racismo e a discriminação social e política dos portugueses descendentes de cidadãos das ex-colônias são ainda questões mal resolvidas e um tanto invisibilizadas, consequências de um trauma causado pela guerra colonial/guerra de libertação, trauma que foi reprimido e que conta, igualmente, entre as suas vítimas aqueles que foram forçados a combater num conflito injusto e com os quais o país nunca lidou devidamente.
Não obstante o reconhecimento e o lugar fundacional que o 25 de Abril e a Revolução dos Cravos têm no Portugal de hoje, fato é que o país se tornou relativamente complacente para com as conquistas desta revolução singular e para com o projeto que a animou e a partir dela se constituiu. Mas os projetos revolucionários são mesmo assim, nunca terminam, estão sempre em vias de se fazer. Assim, se há uma lição que podemos tirar do 25 de abril de 1974 para os dias que vivemos hoje, essa lição é a seguinte: quando tudo parece estar perdido e a letargia imposta pela dureza da sobrevivência despolitiza e amofina um povo, algo acontece que reacende a disposição para a luta por um mundo melhor, a camaradagem e a fraternidade entre os oprimidos. Esta lição serviu e, espera-se, continuará servindo a Portugal, apesar dos incidentes de percurso.
Mas pode servir também ao Brasil – que, como já dizia Chico Buarque, está muito carente de “algum cheirinho de alecrim” – e todos os povos que se revejam nos traços de universalidade das condições e do projeto revolucionário que a inspira e que, parafraseando o capitão de Abril Salgueiro Maia, ilumina o caminho para acabarmos com o estado a que chegámos.
Quem viveu esse dia tem muitas histórias para contar, mas queremos lembrar só de uma, a do dia em que o professor Ruy Luis Gomes que, expurgado da Universidade em 1947, exilado no Brasil, onde lecionou, regressa a Portugal depois da revolução e é (re)instituído reitor da Universidade do Porto sob a ovação da comunidade acadêmica que o carregou em ombros até sua sala e soube, assim, fazer justiça.
Viva o 25 de Abril! 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!
Cristina Amélia Carvalho
Nuno Pereira Castanheira
Maria João Ramos Pereira