Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), o professor Gilberto Calil atua como 2º Tesoureiro da Regional Sul do ANDES-SN e integra o Grupo de Pesquisa História e Poder. Presidente da Adunioeste Seção Sindical (Sindicato de Docentes da Unioeste), o docente apresenta, desde abril de 2020, o quadro “Números da Pandemia“, no youtube do Esquerda Online. Nesta entrevista exclusiva para o boletim InformANDES na UFRGS, Calil analisa o contexto da pandemia no Brasil, situando interesses políticos e explicando porque a volta às salas de aula não deveria estar em pauta neste momento.
De referência internacional em vacinação, o Brasil ocupa hoje o 59º lugar no ranking global de aplicação de doses contra Covid-19 na relação a cada 100 habitantes. Qual a sua análise sobre essa mudança de condição sanitária?
O desastre brasileiro na política de vacinação não é isolado, e sim um capítulo de uma política integralmente desastrosa de gestão da pandemia, fundamentalmente pautada na estratégia de tentar produzir imunização coletiva através da contaminação geral da maior parte da população – o que é absurdo do ponto de vista científico e a razão direta de novas variantes da doença. Essa estratégia – a mesma que levou a estimular comportamentos de risco, deixar de tomar medidas de contenção e estimular desinformações – não colocou ênfase no planejamento e aquisição de vacinas porque não era através da vacinação que se esperava a superação da pandemia, e sim do contágio generalizado. Apenas muito tardiamente, e por pressão da opinião púbica, é que se emenda parcialmente a estratégia de imunização, passando a adquirir vacinas. Pela estrutura e história do SUS, pelas instituições de pesquisa e por sua capacidade técnica, o Brasil tinha todas as condições para ser exemplo mundial em eficiência na política de vacinação, além de, por ter sido beneficiado com a demora dos primeiros casos, poderíamos ter sido também um exemplo de politica de contenção da pandemia, se assim fosse o projeto do governo brasileiro. Hoje, contudo, temos praticamente 5 vezes mais mortes por milhão de habitantes do que a média mundial, resultado de um projeto deliberado e executado de forma minuciosa.
Em entrevistas anteriores, você criticou alguns critérios para definição dos grupos de risco no Plano Nacional de Imunização. Quais as falhas dessa divisão?
O Plano Nacional de Imunização (PNI), rebatizado como Plano Nacional de Vacinação, só foi produzido em consequência de uma ação judicial que obrigou o governo a apresentá-lo. Expressão de um governo que não pretendia apostar na vacinação e que não tinha efetivamente um planejamento, ele define um conjunto de 27 grupos prioritários que perfazem 36% da população, mas é apresentado de forma absolutamente aberta no sentido das definições específicas (quais são os profissionais da saúde, quais áreas estão incluídas, quais os critérios de consideração das comorbidades e muitos outros exemplos), o que gera muitos problemas na implementação. Cada estado e município interpreta e modifica de forma livre este ordenamento, sem qualquer unidade nacional. Isso é paradoxal na medida em que esse mesmo governo critica publicamente a liberdade de governos estaduais de estabelecer políticas próprias de contenção e isolamento social. No entanto, naquilo que efetivamente deveria ter uma política nacional, que são os critérios do PNI, deixa uma margem que não é habitual e tradicional, produzindo situações atípicas em que cada estado e cada município utiliza critérios distintos.
Muitos políticos e formadores de opinião direcionam a responsabilidade pelo aumento de casos à falta de cuidados da população. O que se pode pensar sobre isso?
Observando as diferentes experiências mundiais, e sobretudo as mais bem sucedidas na contenção do vírus – inclusive eliminando a transmissão comunitária –, é possível dizer que há 3 fatores absolutamente fundamentais para isso: primeiro, que as medidas sejam tomadas de forma precoce, efetiva e contundente. Segundo, que as pessoas tenham a informação mais clara ampla e objetiva possível para que possam entender a necessidade das medidas de isolamento. Terceiro, que as pessoas tenham condições materiais efetivas de estar em isolamento. No Brasil, nenhuma foi implementada por responsabilidade direta e consciente do governo Bolsonaro. Quando ainda não tínhamos a transmissão do vírus no Brasil, o governo tomou todas as medidas possíveis para facilitar a entrada e a disseminação do vírus, impedindo controle de aeroportos e todo o tipo de barreira que se pudesse estabelecer. Ao longo de toda a pandemia, na estratégia da imunidade coletiva via contágio indiscriminado, tivemos desinformação, propagação de maus exemplos, presidente com máscara pendurada. Sobretudo, quando medidas iniciais de contenção foram sabotadas, dificultaram muito a percepção da efetividade do lockdown. Porque quando elas não são assumidas pelo conjunto da população, no máximo vão reduzir um pouco o total de casos, e o desgaste, que é efetivo, mais o custo dessas medidas, acabam não compensados pelo efeito positivo esperado – que é a superação da transmissão comunitária e a possibilidade de retomar à normalidade, que muitos países conseguiram. Como, por influência politica, sempre tivemos parte da população se recusando a tomar as medidas, nunca tivemos esse efeito. E com isso se amplia a sensação de que não funcionam. Mesmo em condições problemáticas, com aglomeração de pessoas na fila para o cadastro, foi durante a vigência do auxílio emergencial que se conseguiu ter melhores níveis de isolamento, e reduzir essa medida a valores ridiculamente insuficientes inviabiliza isso. Portanto, é muito simplório e incorreto responsabilizar as pessoas que precisam sobreviver pela impossibilidade de se manterem isoladas.
Qual a sua opinião sobre a retomada das aulas presenciais neste momento, e qual o critério defendido pelo ANDES-SN para que isso aconteça?
A realização de aulas presenciais, de acordo com as mais diversas pesquisas, é um dos fatores que incide mais fortemente no aumento do índice de reprodução – ou seja, na transmissão mais rápida e ampliada do vírus. No contexto em que estamos, com 400 mil casos semanais identificados (que representam a ponta de um iceberg 5, 7 ou 10 vezes maior), isso não devia sequer estar sendo discutido como factível em curto ou médio prazo. Idealmente, a possiblidade de retomada poderia ser dada quando estivesse encerrada a transmissão comunitária. Como isso é distante, o mínimo seria com índices muito mais baixos de transmissão comunitária e com a maior parte da população vacinada, de forma a minimizar bastante os efeitos da contaminação. A posição defendida pelo ANDES-SN é de que não é possível retomar as aulas presenciais enquanto não houver o efetivo controle da pandemia, e que, enquanto isso, o que se deve fazer é desenvolver protocolos sanitários efetivos e reais, com investimento, planejamento e readequação de espaços, uma vez que mesmo quando existirem condições de retorno, não será uma simples volta às condições anteriores. Não se poderá abrir mão de medidas de prevenção e contenção e de procedimentos efetivamente bem elaborados.
Qual a posição do ANDES-SN sobre antecipar a vacinação de docentes, tendo em vista o risco de contaminação nas escolas?
Os professores, tanto da educação básica quanto superior, estão incluídos no Plano Nacional de Vacinação dentre os grupos prioritários, mas não entre os primeiros, porque o critério fundamental desta prioridade é o risco. Portanto, a faixa etária mais idosa e outros grupos que por diferentes razões estão colocados antes dos professores efetivamente devem ser vacinados antes. O que se coloca em algumas situações são interesses políticos de governos estaduais e prefeituras de precipitar, de forma temerária, a retomada das aulas presenciais, propondo antecipação em relação a esses grupos – em particular o das comorbidades –, que têm risco mais elevado. Essa medida não é justificada, pois implica na quebra das condições básicas e fundamentais de isolamento – ou seja, colocar esses profissionais vacinados na obrigação de retomar aulas presenciais quando isso absolutamente não tem como ocorrer.
A que podemos atribuir os ataques sociais e políticos sofridos por professoras e professores que protestam contra a retomada do ensino presencial?
Esses ataques são produto de um projeto político de destruição da educação pública, do serviço público e de inviabilização das condições de disseminação do pensamento crítico, que remontam a uma série de processos de médio e longo prazo. O Movimento Escola Sem Partido, por exemplo, foi criado em 2004, e em seu bojo se constituem uma série de iniciativas contra os professores, de desqualificação, desprestígio e ataque das mais diferentes formas à educação nos diferentes níveis. Nesse contexto, a propagação de desinformações, caricaturas e fake news que supõem que os professores não estão trabalhando e, portanto, estariam recebendo salários indevidamente, justamente quando sabemos que o ensino remoto impõe uma intensificação do trabalho docente em níveis insanos e sem precedentes, é de uma perversidade enorme, mas não é algo que não se possa compreender. Articula-se com o momento político e um projeto governamental de fascistização, ruptura institucional, desmonte radical dos direitos sociais e de ataque ao serviço e servidores públicos.
Vacina para todos e todas, no Brasil atual, parece utopia. Como se chegar o mais próximo disso em plena pandemia?
Vacina para todos e todas, gratuita, através do Sistema Único de Saúde, é a pauta mais básica e fundamental, da qual não se pode abrir mão. Se isso está distante, é produto de ações políticas. A história do SUS – em especial o histórico e a capacidade de imunização do sistema brasileiro – é notável e amplamente reconhecida, de tal forma que se sabe hoje, por exemplo, que a Pfizer queria fazer do Brasil a sua grande vitrine latino-americana de eficiência no processo de vacinação, o que só não se efetivou por opção do governo Bolsonaro. Nós temos a possiblidade efetiva de ter vacina pra todos e todas. Estamos em aceleração da produção e ampliação dos contratos assinados, ainda que tenhamos um presidente que segue sabotando de todas as formas possíveis – como provocações estúpidas à China, responsável por fornecer o ingrediente farmacológico ativo, para que isso atrase ainda mais a vacinação. Fundamental neste momento é que esse ritmo da vacinação se acelere mais que o ritmo de contaminação, porque ter mais contágios do que vacina – cenário atual – implica em maiores probabilidades de novas mutações e variantes, que deve ser a preocupação fundamental por colocar efetivamente em risco a efetividade das vacinas.
Como o movimento sindical tem se articulado para proteger os trabalhadores e trabalhadoras dos riscos de contaminação pelo novo coronavírus?
São distintas ações que são necessárias e que vêm se desenvolvendo para garantir proteção a trabalhadores, além de inúmeras iniciativas de resistência e solidariedade no sentido de garantir sobrevivência às parcelas em condições mais precárias, no intuito de minimizar os riscos de literalmente estarem passando fome. O movimento sindical tem priorizado bastante a participação nessas iniciativas, o que é importante. Para além disso, a reivindicação de que sejam garantidas as condições de isolamento a todos os trabalhadores que possam desempenhar suas atividades remotamente, a compreensão de que vivemos um momento absolutamente excepcional e que portanto não se pode considerar de forma normal as situações e a exigência de garantia mínima de condições, medidas necessárias, EPIs para aqueles que desempenham atividades absolutamente imprescindíveis e que não possam ser feitas remotamente.
Sem estudos a respeito da eficácia após o intervalo indicado, o que se pode esperar da falta de segunda dose dentro do cronograma vacinal?
O debate técnico precisa ser travado por pesquisadores dentro da especificidade da área, mas de forma genérica, o que se pode dizer é que a não reserva de doses prevendo essa aplicação foi um ato de imprudência, feito na intenção de acelerar ao máximo possível, mas sem tomar a precaução necessária. Com um presidente da República que, por provocação, vem sabotando de todas as formas as relações com a China, da qual dependemos sobretudo para a compra dos insumos farmacológicos, isso se torna particularmente perigoso. O que tem sido discutido por muitos pesquisadores é que o prejuízo maior seria a não efetivação da segunda dose. Mesmo que o estudo concreto que se tem seja amparado no intervalo indicado – portanto, não se tem parâmetro exato de quanto se perderia, ou se efetivamente se perderia, alargando o prazo de aplicação da segunda dose. O razoável seria que se seguisse o indicado a partir dos estudos hoje disponíveis.