Nada a comemorar neste 31 de março: o necessário resgate da memória da ditadura na UFRGS

Completando 57 anos do golpe militar de 1964, a UFRGS ainda não conhece a história das arbitrariedades, violências e perseguições contra os opositores ao regime perpetradas no âmbito da própria instituição. Em 2019, foi iniciado o projeto “Memória: 50 anos dos expurgos da UFRGS”. Uma de suas ações foi homenagear e ouvir docentes e estudantes expurgados da Universidade nos anos 1960.Também compunha o projeto a exposição de aquarelas do professor José Carlos Lemos (Faculdade de Arquitetura). Entretanto, a Comissão da Verdade da UFRGS, anunciada pela Reitoria em 2013, ainda não foi instalada.

“No dia 7 de maio de 2013, no Salão de Atos, repleto de público, ocorreu instrutiva aula magna da UFRGS, proferida por Cláudio Lemos Fonteles, com o tema ‘Comissão Nacional da Verdade’. Ao final da conferência, o então reitor Carlos Alexandre Netto tomou a palavra e anunciou que, em breve, seria composta e atuante a Comissão da Verdade da UFRGS. O que não chegou a acontecer, e o assunto nunca voltou aos discursos da Reitoria”, relata o professor Robert Charles Ponge, aposentado do Instituto de Letras e ex-diretor do ANDES/UFRGS .

A professora Lorena Holzmann, aposentada do departamento de Sociologia, foi uma das convidadas a planejar a Comissão. Ela lembra que um relatório  foi apresentado à Reitoria, mas nunca houve retorno a respeito do material. “É frustrante, pois levamos de três a quatro meses estudando e pesquisando sobre expurgados e outros afetados pela ditadura. São muitas informações a respeito, por exemplo, de alunos que perderam suas bolsas, foram afastados ou punidos, mas fica tudo no ar sem um Para o professor Ponge,  a Reitoria recuou de seu propósito inicial. “Por quê? A pergunta continua posta”.

Universidade silenciada

As violações de direitos humanos, na ditadura, visaram sobretudo eliminar a resistência à retirada de direitos sociais e à subordinação do país aos interesses privatistas e à hegemonia norte-americana.

Uma das ações mais violentas da ditadura era a perseguição a estudantes e docentes que organizavam a resistência desde os círculos universitários e participavam dos movimentos de enfrentamento ao regime. A vigilância intensiva contra os então chamados “subversivos” era estratégica para coibir qualquer tipo de contestação.
Mas a repressão não atingiu apenas os oposicionistas militantes: docentes eram perseguidos por expressarem reflexões críticas sobre a situação do país, consideradas uma ameaça ao regime. A verticalização da sociedade também atingiu a universidade: docentes, técnicos e estudantes eram perseguidos e ameaçados quando criticavam ou questionavam atos das chefias, nomeadas por apadrinhamento e lealdade aos governos de plantão. Em contrapartida, aqueles que delatavam colegas eram recompensados com favores e todo tipo de benesses.

Memória dos expurgos na UFRGS

Na UFRGS, a caça aos docentes se consolidou em duas etapas: em 1964 e em 1969. Na primeira, durante o AI-1, 18 docentes foram atingidos pela Comissão Especial de Investigação Sumária, instaurada logo após a posse do reitor José Carlos Fonseca Milano.

Cinco anos depois, já com a vigência do AI-5 e uma atuação bem mais agressiva por parte do comando militar, o então ministro Tarso Dutra lançou a Cismec – Comissão de Investigação Sumária do Ministério da Educação e Cultura. Esta, diferentemente da anterior, não envolvia a participação de professores representantes das unidades, o que culminou com a expulsão de mais 23 docentes da UFRGS , informa a professora Cristina Carvalho, aposentada da Escola de Administração, que integra o projeto “Memória: 50 anos dos expurgos da UFRGS”, lançado em 2019.

Coordenada pela professora Claudia Zanatta, do Instituto de Artes, a iniciativa incluiu rodas de conversa com expurgados e familiares, inauguração do Memorial de Pedra (escultura de Irineu Garcia, cercada por um jardim projetado pelos professores Paulo Brack, do Instituto de Biociências, e Sérgio Tomasini, da Faculdade de Agronomia), publicação de entrevistas inéditas e a confecção de um livro, que aguarda a retomada das atividades presenciais para ser impresso na Gráfica da UFRGS.

“Foi uma iniciativa fantástica, porque conseguiu trazer à tona algo que estava sepultado – inclusive com a dor dos expurgados que jamais foram homenageados pela universidade na volta da democracia”, comenta Cristina, lembrando que esse resgate representa “uma lembrança incômoda”.

“Preferiram esquecer porque se descobre que universidades não foram só um espaço de resistência, como também um espaço de entrega, com colegas entregando outros à polícia, ao exilio, às prisões”, complementa.

Memória do movimento docente

Hoje, são muitos os esforços de grupos docentes que buscam resgatar esse passado através de pesquisas, inclusive através do GT História do Movimento Docente (GTHMD), do ANDES-SN.

Dos 434  mortos e desaparecidos pelos órgãos repressivos da ditadura reconhecidos oficialmente, 106 eram estudantes universitários, 12 docentes e 1 técnico-administrativo, conforme levantamento do professor de História Política Milton Pinheiro, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), ex-coordenador da Comissão da Verdade do ANDES-SN.

A Comissão, criada em março de 2013 durante o 32º Congresso do Sindicato Nacional, tem o propósito de contar a versão dos trabalhadores perseguidos nas universidades. Entre os resultados do trabalho, está o Caderno 27: “Luta Por Justiça e Resgate da Memória”, lançado em 2016.

Dos quase 5 mil cidadãos punidos pelo regime, 3.873 eram funcionário(a)s público(a)s, sendo 72 professore(a)s e 61 pesquisadore(a)s.

“Ainda nesse período tortuoso da história brasileira, o ensino privado foi expandido, os acordos com os EUA (MEC/USAID) comprovam a ingerência externa na educação, tendo sido aplicado um conjunto de reformas na universidade para colocá-la a serviço dos planos de desenvolvimento autoritário dos governos militares, como podemos entender a Lei nº 5.540/68. E, posteriormente, com a implementação da Lei nº 5692/71 que criou diretrizes e bases para uma educação totalmente voltada aos interesses profissionais como formas de servir aos capitalistas em nosso país”, frisa nota emitida nesta quarta-feira (31) pelo Sindicato Nacional.

Ditadura nunca mais

Embora a sociedade brasileira tenha saído desse período tenebroso, muitos avanços democráticos não foram consolidados e outros nem foram formalizados. Um exemplo de resquício dos tempos da ditadura é a elaboração de lista tríplice para escolha de reitores das universidades.  Servidores públicos conquistaram o direito à sindicalização; mas o direito à greve, inscrito na Constituição, nunca foi regulamentado, o que permitiu a sucessivos governos congelar salários, desmontar carreiras e aposentadorias. Grande parcela da população, composta em sua maioria por negros e negras, indígenas, quilombolas, e trabalhadores do campo, vive ainda à margem dos direitos sociais.

O autoritarismo ainda disputa espaço em nossa sociedade. A tentativa de criminalização de movimentações políticas dentro da universidade é um desses exemplos, assim como o projeto Escola sem Partido e todas suas variantes.

“Em defesa da democracia e da luta da nossa classe contra a tirania, denunciamos qualquer forma de comemoração desse evento nefasto da história brasileira. Tal atitude, ocorra onde ocorrer, deve merecer o nosso mais profundo repúdio. Por nossos/as mortos/as, nem um minuto de silêncio, toda uma vida de combate! Ditadura nunca mais!”, conclama o Sindicato Nacional.

É tempo de instalar a Comissão da Verdade

Na UFRGS, é preciso retomar os trabalhos da Comissão da Verdade que foram anunciados em 2013. Há muitos registros a serem consultados, estudados e divulgados. Uma instituição que tem como missão a produção de conhecimento não pode renunciar a conhecer sua própria história.

Acesse aqui o relatório e outros documentos da Comissão Nacional da Verdade.