Revitalização inclusiva do Cais Mauá mobiliza docentes e estudantes da UFRGS, em embate com a lógica privatista

Devolver o Cais do Porto para a cidade de Porto Alegre, como espaço público e inclusivo de promoção da Cultura, é a proposta que mobiliza docentes e estudantes de Pós-Graduação da UFRGS, ao lado do Coletivo Cais Cultural Já.   No embate com a especulação imobiliária e comercial que tem o Cais como alvo, o grupo vem há mais de um ano buscando audiência com prefeito e governador para apresentar seu projeto, que mostra a viabilidade econômica da ocupação dos armazéns para atividades culturais diversificadas, pluralistas e representativas da cidade.

O trabalho “Diretrizes Gerais – Proposta de Ocupação Cultural do Cais do Porto de Porto Alegre” é fruto de projetos de pesquisa e extensão nas áreas de Arquitetura, Administração e Sociologia, que buscam formas de revitalizar a área, de 180 mil metros quadrados e mais de 3 km de orla, em pleno Centro da capital.

“Precisamos fortalecer o multiculturalismo e o reconhecimento dos direitos de todos/as, se quisermos construir uma sociedade mais equitativa, coesa e democrática”, destaca o professor Luciano Fedozzi, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), que faz parte do grupo de pesquisadores que elaborou o estudo.

A proposta, que começou a ser desenvolvida após rescisão do contrato com o consórcio privado Cais Mauá do Brasil S.A., em 2019, parte dos preceitos do Estatuto da Cidade e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) adotados pela ONU, norteadores das políticas urbanas que devem ser seguidos pelos governos.

“Os armazéns e o setor do Gasômetro, que em sua grande maioria são tombados, são bens inalienáveis que precisam estar ao alcance de todos, sem discriminação socioeconômica ou de outra ordem. E isso é possível desde que haja um projeto com esta visão de cidade e de país e abertura das autoridades para a participação da sociedade, o que não vem ocorrendo”, explica o docente, reforçando que “grandes projetos urbanos devem ser integradores da cidade e inclusivos de sua população”.

Viabilidade econômica

Demonstrar a viabilidade econômica foi um dos principais desafios do trabalho. “Isso porque nos anos anteriores, de avanço da privatização do Cais Mauá, um dos argumentos utilizados pelo projeto neoliberal foi justamente a narrativa de que não haveria alternativa viável a não ser aquela que o mercado poderia oferecer. E a oposição a este projeto não conseguiu na época oferecer uma solução, a não ser baseada no orçamento público estadual e local, que estavam combalidos”, lembra Fedozzi.

A alternativa foi criar um sistema de compensação territorial e econômica. “É possível aceitar a alienação da área das antigas docas, sendo os recursos investidos nas áreas que são patrimônio cultural e histórico da cidade. Os cálculos econômicos estimados demonstram a total viabilidade desse sistema de compensação para dar conta da revitalização dos armazéns. Além disso, fizemos estudos que demonstram a possibilidade de autossustentabilidade do Cais do Porto através de uma série de atividades rentáveis”, comenta o pesquisador.

A gestão do local passaria a ser feita por organizações culturais e sociais da sociedade civil sem fins lucrativos, a partir de contrato com o governo estadual, conforme prevê e a legislação brasileira. “A governança será democrática e transparente, com fundos e conselhos de administração compostos por todos os atores responsáveis pela preservação e sustentabilidade do Cais”.

Ocupação democrática

O modelo sugerido pelos pesquisadores não prevê imóveis residenciais, pelo grau de privatização e elitização, mas admite prédios comerciais capazes de gerar um fundo para financiar o restauro dos armazéns.

Espaços cênicos, de trabalho, estudos, oficinas e apresentações para todo tipo de manifestação cultural integrariam a população de toda região metropolitana em área central e de fácil acesso.

“Nossa proposta é de ocupação mista entre atividades culturais com potencial comercial e outras de caráter popular, aberto, e de ocupação por diferentes manifestações culturais locais. Prevê, ainda, ocupação mista de bares, cafés e restaurantes de diferentes níveis de acesso econômico”, detalha o professor Pedro Costa, da Escola de Administração, frisando a importância do balanço entre atividades comerciais e de acesso aberto contra “um modelo elitizado e com áreas abertas segregadas das atividades culturais e de gastronomia pagas”.

“A partir desses estudos técnicos, o argumento neoliberal baseado no mercado não se sustenta. Ou seja: se a questão é de recursos, estamos oferecendo uma alternativa viável, realista, com base técnica e assentada na legislação urbana mais avançada do país”, analisa Fedozzi, adiantando que, se os governos estadual e municipal quiserem, o projeto pode ser realizado pelo grupo de forma inovadora e sem recursos orçamentários. “Portanto, se trata de uma escolha política e não da ausência de alternativas, como tenta fazer crer o projeto neoliberal-autoritário que cada vez mais avança nas políticas urbanas do país”.

Estatuto da Cidade x Embarcadero

A ocupação privatista do Cais do Porto vem sendo tentada há décadas. Em 2010, na gestão de Yeda Crusius (PSDB), foi concretizada em meio a muita contestação – inclusive por parte do Tribunal de Contas do Estado, que denunciou descumprimento de cláusulas contratuais do consórcio e várias irregularidades. Mesmo assim, o contrato foi mantido pelos governos seguintes, de Tarso Genro (PT) e José Ivo Sartori (PMDB).

rescisão só aconteceu no governo de Eduardo Leite, que ao mesmo tempo concedeu, através de acordo, a ocupação empresarial provisória e sem licitação de área em frente a um dos armazéns, dando início ao chamado projeto Embarcadero.

“Esta ocupação privada – por restaurantes, estacionamento e lojas – cumpre uma função simbólica de demonstração do tipo de uso que o estado pretende dar ao Cais. Na verdade, é uma cabeça de ponte para consumar uma ‘revitalização’ com caráter comercial-imobiliário do Cais do Porto”, alerta Fedozzi.

Radicalmente distinto do que está sendo chamado de “degustação” pelo governo estadual, o modelo sugerido pelos docentes viabiliza uma ocupação democrática, sem seleção de público, como exige o Estatuto da Cidade e os princípios da reforma urbana para garantir o direito de todos/as às cidades.

Universidade pública na defesa do espaço público

Além disso, coloca a Universidade Pública, onde extensão, ensino e pesquisa são funções precípuas, como agente de inclusão e interação com a realidade social e com os vários interesses e projetos de desenvolvimento urbano e do país. “Além de uma ajuda fundamental à equipe multidisciplinar que formamos para desenvolver o projeto, vem sendo uma atividade pedagógica enriquecedora em todos os sentidos. É a verdadeira ideia da comunidade acadêmica interagindo com a sociedade a partir do interesse público que se fortalece”, sintetiza Fedozzi.

“A contribuição da universidade inicia com o projeto, mas outras ações de extensão, ensino e pesquisa poderão ser desenvolvidas futuramente no local, com forte interação com a cultura da cidade”, finaliza Pedro Costa.

Em diálogo com deputados estaduais e outros movimentos, o grupo de pesquisadores da UFRGS e o Coletivo Cais Cultural Já vem buscando novos aliados para fortalecer a luta em defesa do espaço público contra as políticas privatistas que reduzem áreas privilegiadas a negócios rentáveis para poucos.

Leia mais sobre o projeto de revitalização inclusiva em reportagens do Matinal Jornalismo,  do Sul21 e do Jornal JÁ.