Criado para expandir o ensino superior a qualquer custo e sem qualquer custo, o Reuni Digital pode ser a manobra decisiva para o desmonte do ensino público federal no país. Ainda que a proposta simule uma aparência democrática, parecendo indicar uma preocupação do governo com o maior acesso da população ao ensino superior, sua essência é privatista, atenta contra a autonomia universitária e ignora a necessidade de mais investimento nas universidades.
Com o pomposo nome de Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, o projeto prevê
substituir boa parte do ensino presencial por aulas à distância. Como justificativa de aparência louvável, o governo federal usa as metas de expansão do ensino superior do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, que preveem aumento de 50% na taxa bruta de matrículas – sendo 40% destas no ensino público.
A minuta, contudo, não menciona a situação das vagas já existentes em universidades, nem defende estratégias para melhorar a qualidade do ensino e da pesquisa produzidos ou das condições de trabalho e infraestrutura, alerta nota da APUFPR – Seção Sindical do ANDES-SN na Universidade Federal do Paraná (APUFPR).
O projeto, defendido pelo governo em agosto em debate na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, também prevê que parte das vagas presenciais possam ser convertidas em modalidades à distância ou semipresenciais, além da criação de uma Universidade Federal Digital. “Mesmo pesquisas de mestrado e doutorado poderiam ser feitas à distância”, informa a APUFPR.
Populismo
A falta de recursos financeiros para a educação superior federal no Brasil não é segredo, e, desde 2016, vem sendo cada vez mais sufocante em função da EC 95, do Teto de Gastos. O que parecia ser o limite ficou ainda pior no governo Bolsonaro: em 2021, o orçamento disponível para gastos discricionários (com custeio e investimento) do Ministério da Educação (MEC) foi menos da metade do montante de 2018.
“Apresentar uma proposta de expansão de vagas, nas atuais circunstâncias, quando não se garantem as melhores condições para as vagas existentes, quando não temos garantia de suficientes recursos de investimento e de custeio para o sistema das universidades federais, implica aprofundar o sucateamento da nossa infraestrutura, além de comprometer o necessário apoio aos estudantes ora efetivamente matriculados, sendo graves e perversas tanto a atual redução da assistência estudantil, quanto a diminuição dos recursos destinados à manutenção e aos projetos próprios das universidades”, analisa a UFBA, primeira universidade a se posicionar contra o Reuni.
“Projetar expansão a qualquer preço, em contexto de tamanha escassez, tornar-se-ia então um gesto mais eivado de populismo que de reflexão acadêmica aprofundada, sobretudo caso se realize a expansão por meio de um ente sem substância, como o seria uma Universidade Federal Digital, em detrimento do necessário crescimento estratégico de nossas universidades plenas”, pondera a instituição, frisando que, assim como já ocorrido com o Future-se e o Novos Caminhos, o projeto deve ser rejeitado.
A UFBA lembra, ainda, que os efeitos negativos do trabalho remoto, assim como as condições desiguais de acesso à internet na sociedade, já foram sentidos durante o Ensino Remoto na pandemia, e não podem ser desconsiderados.
“As tecnologias podem sim servir para enriquecer universidades plenas, mas nunca para as substituir ou prejudicar. Desse modo, mesmo avanços benfazejos, com os devidos reparos e adequações que nossas instituições autonomamente determinam, não podem se dar ao preço do sucateamento das universidades, nem sobretudo em prejuízo da precedência que, em nossas instituições, têm e devem continuar a ter as atividades desenvolvidas em nossos laboratórios, bibliotecas, teatros, salas de aula, espaços de convivência e encontro de nossa rica diversidade. Somos, afinal, universidades plenas, cuja autonomia tem como fonte o entrelaçamento indissolúvel de ensino, pesquisa e extensão, de modo que em nossas atividades se tecem as relações formadoras próprias de um autêntico ambiente universitário, no qual se produzem ciência, cultura e arte”, esclarece a nota.
Preparando o terreno
O terreno para o Reuni Digital já vinha sendo preparado há bastante tempo. Em dezembro de 2019, o MEC publicou a Portaria 2.117/2019, que autorizou as IES a ampliarem para até 40% a carga horária de educação a distância (EaD) em cursos presenciais de graduação. O percentual anterior era de no máximo 20%, exceto às instituições com nota 4 no Conceito Institucional e para cursos com nota 4 ou 5 no Conceito de Curso.
Já em 2020, a pasta instituiu um grupo de trabalho para discutir, elaborar e apresentar estratégias para ampliar a oferta de cursos de nível superior à distância nas universidades federais. A Portaria 434 da Secretaria de Educação Superior (Sesu/MEC) foi publicada em 23 de outubro e entrou em vigor no dia 3 de novembro.
Ao mesmo tempo, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostra que, enquanto as vagas virtuais em cursos de Ensino Superior registraram aumento de 19,1% em 2018 e 2019, houve redução de 3,8% na modalidade presencial.
“Trata-se de uma proposta voltada para os números, o que, no limite, não passa de propaganda política e eleitoral antecipada para reduzir a percepção da população sobre a péssima atuação do governo na Educação”, avalia a APUFPR.
“O governo de Jair Bolsonaro vem tentando, com muito esforço, isolar as universidades públicas da sociedade e, da mesma forma, manter as pessoas em bolhas montadas para espalhar ódio e mentiras. O Reuni Digital seria apenas mais uma etapa dessa estratégia”, completa.