A divulgação da proposta de retomada das aulas presenciais no estado pegou de surpresa a comunidade escolar, dos profissionais da saúde e parlamentares. No momento em que o Rio Grande do Sul enfrenta o momento mais grave desde o início da pandemia do novo coronavírus, com altos níveis de contágio e mortes, o anúncio do governo Leite de retorno a partir do dia 31 de agosto, começando pela educação infantil, causou espanto e incredulidade.
Professores e especialistas em saúde questionam o tema ser colocado em momento em que a crise nem dá sinais de ser controlada, e principalmente a proposta de começar pelas crianças menores, que têm menos condições de manter o distanciamento e poderão, assim, ser agentes de propagação do vírus – na escola e dentro de casa.
“É uma proposta fora do contexto das próprias ações do governo. Nos deixa muito confusos, dá a impressão de que a mensagem inicial não era verdadeira ou que agora quem está determinando as ações são outros interesses e não a preservação da vida”, afirmou ao Sul 21 o infectologista Alexandre Zavascki, professor da Faculdade de Medicina da UFRGS e consultor do Comitê Covid-19 da Sociedade Rio-Grandense de Infectologia.
O infectologista destaca o significado da “mensagem” passada pelo governo, primeiro com a volta do jogos de futebol, seguida pela liberação do comércio e, agora, com a proposta de volta às aulas. “Não transmite a mensagem que deve, de que a epidemia não está controlada. É uma mensagem que leva à baixa adesão do distanciamento, perdeu o sentido pedir para as pessoas ficarem em casa”, diz o médico, lembrando que já há, numa parcela da sociedade, a ideia de que a epidemia não existe.
Membro do comitê científico que tem assessorado o governo do Estado ao longo da crise sanitária, Zavascki também lamenta que o grupo não tenha sido consultado. “Infelizmente, não houve consulta. Não é algo que vai ficar sem consequências. Querem exigir das crianças os cuidados que nós, adultos, não conseguimos ter.”
Parlamentares querem esclarecimento
Nem o Conselho Estadual de Educação, nem órgãos como o Tribunal de Contas do Estado (TCE) e as promotorias de Educação do Ministério Público estadual receberam dados e estudos técnicos que embasem a proposta. A Comissão de Educação da Assembleia Legislativa gaúcha informou que vai solicitar esclarecimentos ao governo do Estado. “Precisamos entender, por exemplo, o que leva o Executivo a propor que o retorno das aulas presenciais comece pela Educação Infantil, se a consulta pública realizada pelo próprio governo indicou justamente o contrário. Quais são os critérios que estão sendo utilizados e, mais, quem está avalizando isso? Porque, se o critério é econômico, não tem cabimento, não vamos aceitar”, aponta a presidente da Comissão, deputada Sofia Cavedon, em reportagem do Correio do Povo.
O colegiado articula uma reunião na próxima semana, para a qual serão convidadas, além de diferentes esferas do poder público, entidades de todos os segmentos envolvidos. Também está previsto encontro da Federação de Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) com o Governo para avaliar a ideia, e sindicatos de professores da rede pública (Cpers) e da rede privada (Sinpro) já se manifestaram contrários à proposta. “É uma irresponsabilidade ter feito a pesquisa e descartar o resultado, é irresponsabilidade colocar os mais vulneráveis na frente e trazer o tema agora no momento mais grave da crise”, afirma Helenir Schurer, presidente do Cpers. Para ela, após a liberação das atividades econômicas, trata-se de mais um indicativo de que o governo está cedendo à pressão empresarial. “Não se brinca com a vida das pessoas.”
“Esse não é o momento de voltar nada. Estamos com casos muito altos ainda e uma pequena mudança pode causar esgotamento do sistema de saúde”, acrescenta a professora Lucia Campos Pellanda, reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Conforme levantamento Federação Nacional das Escolas Particulares (FNEP), os únicos estados brasileiros que já autorizaram o retorno às aulas presenciais são Amazonas – onde foi registrado um caso de contaminação de uma professora já no primeiro dia – e Maranhão. Além do Rio Grande do Sul, outros sete estão planejando o retorno: Paraná, São Paulo, Mato Grosso, Pará, Piauí, Ceará e Alagoas.
Começo pela Educação Infantil
Pesquisa realizada em julho pelo governo estadual com secretarias municipais, conselhos, sindicatos e entidades sociais para reunir sugestões sobre a retomada das aulas apontou que 89,5% dos participantes escolheu o cenário que colocava a educação infantil como a última a retomar as aulas presenciais. No entanto, a proposta do Piratini é de que as aulas recomecem justamente com as crianças mais novas, de forma escalonada, em regiões com bandeiras amarela e laranja. Caberia aos prefeitos a decisão de retomar o ensino presencial, e pais poderiam optar por não enviar os filhos para a escola, seguindo no formato remoto. Para o Ensino Superior, o Executivo gaúcho propõe 14/9 como data de retomada. O projeto prevê um sistema “híbrido”, dividindo turmas pela metade, e os conteúdos entre modalidade presencial e à distância.
Outra pesquisa recente, realizada pelo Comitê Popular Estadual de Acompanhamento da Crise Educacional no Rio Grande do Sul e a Associação Mães & Pais Pela Democracia, com apoio do ANDES/UFRGS e dezenas de entidades, indicou que 89% dos pais ou responsáveis dos estudantes preferem aguardar o resultado dos estudos com vacinas antes de retornar às aulas presenciais. O coletivo divulgou nota pública manifestando preocupação com a mudança de conduta do Piratini, pois anteriormente, quando foram apresentados os resultados de uma consulta feita com entidades educacionais, o governo salientou que a volta às aulas presenciais somente seria realizada em um cenário de queda no número de pessoas infectadas e no de óbitos.
“Qualquer decisão sobre as condições de retorno às aulas presenciais deve ser deliberada com a participação de toda a comunidade escolar e acadêmica de nosso estado em articulação intersetorial com as áreas da economia, da saúde, da cultura, do lazer, da segurança, da assistência social e em acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e balizadas pela ciência. Para tanto, é fundamental a criação de mecanismos que assegurem a escuta, o envolvimento e a participação democrática das nossas comunidades escolares e acadêmicas”, afirma o Comitê.