25 de julho de 2019
O Future-se, projeto apresentado em julho pelo Ministério da Educação (MEC) com foco em financiar universidades federais através de recursos privados, põe fim ao sentido público das universidades, institutos federais e Cefets. O programa, anunciado em meio ao caos e à incerteza decorrentes do bloqueio orçamentário que ameaça até mesmo a continuidade das atividades nessas instituições, alega garantir a autonomia financeira das mesmas, porém foi criado sem qualquer diálogo com as comunidades envolvidas e apresenta diversas incoerências e dispositivos que ferem a Constituição.
“Não parece ter sido por acaso a decisão de alijar reitores e reitoras do processo de construção da proposta. As manifestações públicas do MEC sugerem que as universidades são locais de produção de balbúrdia, com má gestão e doutrinação ideológica. Obviamente tais preconceitos parecem ser a explicação para que o MEC não tenha chamado essas instituições públicas para discutir a proposta de futuro para a educação superior do país, desconsiderando o fato de que os reitores e reitoras são os representantes legítimos das Universidades, escolhidos por suas comunidades”, aponta documento elaborado pela Ufpel a respeito do plano do MEC.
Os principais pilares financeiros do Future-se seriam R$ 33 bilhões de fundos constitucionais, R$ 17,7 bilhões em leis de incentivos fiscais (como a Rouanet, até então criticada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro) e depósitos à vista e R$ 50 bilhões do fundo de patrimônio imobiliário (a União concedeu lotes e imóveis ao Ministério da Educação para que sejam cedidos à iniciativa privada). Além disso, a gestão passaria a ser feita por Organizações Sociais de caráter privado.
O texto preliminar do Projeto de Lei, divulgado na sexta-feira (19), prevê como aptas a oferecer serviços Organizações Sociais com atividades dirigidas às áreas de ensino, pesquisa, desenvolvimento, inovação, proteção, preservação do meio ambiente, cultura e saúde. “Os contratos de gestão poderão ser celebrados com organizações sociais já qualificadas pelo Ministério da Educação ou por outros Ministérios, sem a necessidade de chamamento público, desde que o escopo do trabalho esteja no âmbito do contrato de gestão já existente”, contempla o PL.
A Ufpel alega não haver necessidade de participação da organização social no apoio à execução de planos de ensino, pesquisa e extensão. “Já existem Pró-Reitorias específicas para planejar e executar essas atividades. O que parecia ser uma contribuição da organização social com a gestão de despesas correntes das universidades transforma-se na contratação de uma gestora paralela. Não há como evitar falar em terceirização da gestão das Universidades Federais”, previne o documento.
Gestão privada nas universidades públicas
Do ponto de vista operacional, o Future-se viabiliza firmar contratos de gestão, como é o caso de parcerias público-privadas (PPPs) e cessão de prédios e lotes; criar fundos patrimoniais, com contribuição de empresas e ex-alunos, para financiar pesquisas; e ceder os chamados naming rights (“direitos de nome”, em português) de prédios e campi universitários, parceria por meio da qual os equipamentos podem passar a ser identificados com nomes de agentes privados. A gestão do fundo também passaria para o âmbito privado.
“A prestação de contas será feita de forma simplificada, privilegiará os resultados obtidos e deverá ser acompanhada de relatório de avaliação do resultado das aplicações dos recursos em pesquisa, desenvolvimento e inovação”, impõe o programa.
Para o professor Paulo Henrique Pinheiro, da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), são muitos os ataques à autonomia universitária dentro do projeto. “Na Seção III, que trata das competências da Organização Social a ser contratada, está dito que será competência da empresa privada o apoio à execução dos Planos de Ensino das Ifes – atribuição dada ao docente a partir da LDB e dos Núcleos Docentes Estruturantes – NDE (Res CONAES 01/2010). Na mesma Seção, o item III estabelece como competência da empresa privada a gestão de recursos e de patrimônio. Mais um ataque ao artigo 207 da Constituição”.
A investida contra a autonomia também pode ser lida na Seção IV do PL, que trata do fomento. “Nessa seção, em seu artigo 7º, fica estabelecido que as Ifes podem repassar recursos orçamentários e permissão para uso de bens públicos pelas Organizações Sociais. O artigo 8º avança no sentido de a Secretaria de Patrimônio da União deverá transferir bens imóveis para o MEC como pré-requisito do que virá no artigo 9º: o MEC poder participar como cotista de fundos de investimentos. Aí temos a possibilidade real de o MEC alienar bens imóveis da União para investir no mercado de capitais”, continua o professor da Uespi.
Os artigos 22 e 23 da Seção V definem a criação de um Fundo de Financeiro com aporte de recursos oriundos de receitas de prestação de serviços, mensalidades de pós-graduação, investimentos financeiros e rentabilidade de fundos de investimentos. “Só não fala nos aportes constitucionais da União para as mantenedoras das Ifes”, denuncia Pinheiro, destacando que, com a desculpa de fortalecer a autonomia, o MEC, na verdade, busca “tirar a responsabilidade da União e deixar as universidades buscarem autofinanciamento no mercado financeiro. Na prática isso significa a privatização do ensino superior público do país”, lamenta.
Texto confuso
O Future-se adota um viés eminentemente econômico para tratar do futuro das universidades federais, deixando de considerar questões centrais da educação superior como ensino, pesquisa e extensão. Também ignora o Plano Nacional de Educação, aprovado por unanimidade no Congresso Nacional, que deveria nortear as políticas públicas do setor.
Além disso, o projeto apresentado a reitores e imprensa diverge do texto final do PL, especialmente quanto às atividades a serem desempenhadas pelas organizações sociais. “As apresentações sugerem uma participação focada na ‘libertação das universidades’ de seus principais gastos contínuos e terceirizações, e o texto sugere uma participação também nas atividades-fim da universidades”, aponta a Federal de Pelotas.
A versão final ainda apresenta informações superficiais e insuficientes para a compreensão de temas densos. “Não é legítimo construir um plano para o futuro das universidades federais sem diálogo com as universidades federais. Em nenhum momento as instituições – principais implicadas – participaram da elaboração do plano”, alerta a Ufpel, enfatizando que a política de adesão sugerida desequilibra a unidade das instituições. “A administração da UFPel é contrária a qualquer tentativa de divisão das universidades federais, especialmente uma que separe as universidades entre aderentes e não aderentes. Essa divisão pode gerar desigualdades na quantidade de dedicação do MEC. É admissível conjeturar que haverá instâncias de editais e financiamentos públicos abertos somente a Organizações Sociais, do qual universidades não aderentes não poderão participar”.
Outra ameaça está na divisão do programa em três eixos – Gestão, Governança e Empreendedorismo; Pesquisa e inovação; e Internacionalização –, priorizando a competitividade, a captação de recursos próprios e o empreendedorismo individual entre docentes e alunos e submetendo a produção do conhecimento aos interesses do Mercado, e não mais às necessidades da sociedade.
“Além de instituir uma selvagem corrida por verbas a qualquer custo, o Future-se coloca na agenda um darwinismo acadêmico explícito. Áreas que não conseguirem captar nada terão destino incerto, uma vez que o PL nada menciona sobre destinação de recursos constitucionais à Educação”, acrescenta Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
Posicionamento das entidades da Educação
No mesmo dia em que o Future-se foi anunciado pelo governo, o ANDES-SN, juntamente com Fasubra, ANPG (Associação Nacional de Pós-Graduandos), CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), Fenet (Federação Nacional dos Estudantes em Ensino Técnico), Proifes (Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituição Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico), Sinasefe (Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica), Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) e UNE (União Nacional dos Estudantes), divulgou manifesto repudiando a proposta.
A secretária-geral do ANDES-SN, Eblin Farage, entende que “não há o que ser negociado nesse projeto. Ele tem que ser barrado no seu conjunto, pois destrói o sentido público e altera a forma de gestão da universidade. Além disso, ataca a autonomia, em especial, ao que se refere à produção do conhecimento, que ficará subordinada aos interesses dos investidores”.
O presidente da Andifes, Reinaldo Centoducatte, apontou que a Associação vai solicitar aos reitores que criem grupos de trabalhos para discutir o assunto nas Instituições de Ensino Superior (IES). Afirmou, também, que cada uma tem autonomia para tomar decisão própria.
Ataque ao funcionalismo
Outro grande ataque contido no programa do governo é o desmonte das carreiras do magistério superior, do ensino básico técnico e tecnológico (EBTT) e dos técnicos-administrativos. O programa aponta para a cessão de atuais servidores para as Organizações Sociais e, ainda, para a contratação via essas organizações – e não mais através de concursos públicos, vinculado ao Regime Jurídico Único.
“A remuneração recebida em razão da elaboração, execução e êxito de qualquer programa desenvolvido no âmbito do Future-se é de natureza privada, não integrando a remuneração do servidor público, para nenhum fim, nem gerando reflexos de qualquer natureza na remuneração do cargo público, inclusive previdenciários”, diz o PL, que não menciona o fazer técnico-administrativo, levando à interpretação de que os profissionais desta área venham a ser gradativamente substituídos por trabalhadores terceirizados via organização social.