SOBRE A NOVA PROPOSTA
A nova proposta apresentada pelo MEC para o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores – Future-se estabelece que a adesão ao Programa ocorrerá pela celebração de um Contrato de Desempenho da Universidade com o MEC que “abrangerá todos os eixos do programa”. Este Contrato conterá “indicadores para mensuração do desempenho relacionados aos eixos do Programa” (Art. 7º).
São os seguintes os eixos do Programa: “I – pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação; II – empreendedorismo; e III – internacionalização” (Art. 4º).
Para a execução do Programa a Universidade terá que “celebrar contratos e convênios diretamente com fundações de apoio (…) e/ou contratos de gestão com organizações sociais (…)” (Art. 11).
O Art. 6º. afirma que como “contrapartida” à assinatura do Contrato de Desempenho a Universidade terá a “concessão de benefícios especiais”. O Art, 8º estabelece quais são esses “benefícios”: “a garantia de recebimento de receitas provenientes do Fundo Soberano do Conhecimento e do Fundo Patrimonial do Future-se, que devem ser destinados às atividades de empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação e internacionalização”.
O Fundo Soberano do Conhecimento e o Fundo Patrimonial do Future-se são definidos da seguinte forma (Art. 3º):
“XV – Fundo Patrimonial do Future-se (FP-Future-se): conjunto de ativos de natureza privada instituído, gerido e administrado pela organização gestora do fundo patrimonial, com o intuito de constituir fonte de recursos de longo prazo, a partir da preservação do principal e da aplicação de seus rendimentos; e
XVI – Fundo Soberano do Conhecimento (FSC): fundo de investimento específico, multimercado, constituído a partir da integralização de diversos ativos financeiros, inclusive imobiliários, com a finalidade de geração de receitas para alocação nas ações de fortalecimento do programa, assim compreendidas aquelas relacionadas à pesquisa, ao desenvolvimento, à inovação, ao empreendedorismo e à internacionalização”.
SOBRE A DESOBEDIÊNCIA AO ART. 207
Examinamos esta nova proposta sob a ótica do Art. 207 da Constituição Federal de 1988, “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
Apesar de afirmar, “constrangedoramente” para um documento oficial do Governo brasileiro, que um dos preceitos da Lei será o da “I – obediência à autonomia universitária, consoante o Art. 207 da Constituição”, há indicações em todo o texto que esta “esdrúxula” afirmação (poderia deixar de obedecer a Constituição?) não passaria de uma retórica.
Ao estabelecer os fundamentos do Programa os “indicadores de desempenho” associados aos três eixos do Programa, há uma série de “desobediências” ao Art. 207. Vejamos alguns deles (outros muito mais poderiam ser elencados):
- Ao tratar das finalidades do Programa, apresentam-se os seguintes itens: “I – propiciar fontes adicionais de financiamento para as universidades e institutos federais; II – incentivar o incremento da captação de recursos próprios” (Art. 1º).
As “fontes adicionais de financiamento”, portanto, não oriundas dos tributos da União e seriam oriundas do FSC e do FP – Future-se, não constarão do Orçamento Geral da União e serão executados via Fundação de Apoio e/ou Organizações Sociais. Dessa forma, pode-se concluir que os recursos associados aos impostos seriam diminuídos ao longo do tempo, transferindo-se as atividades relacionadas aos três eixos para serem executados pelas Fundações e/ou Organizações Sociais. Isto significa desobediência à “autonomia didático-científico” e ao “princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
- Ao tratar dos “benefícios especiais”, no Art. 8º há a afirmação de que “a garantia de recebimentos de receitas provenientes do Fundo Soberano do Conhecimento e do Fundo Patrimonial do Future-se, que devem ser destinadas às atividades de empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação e internacionalização.”
Ao estabelecer que essas receitas devem ser destinadas às atividades de “empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação e internacionalização”, há uma desobediência à autonomia de gestão financeira, estabelecida no Art. 207 da Constituição.
- Ao estabelecer os princípios que devem orientar a Lei, os seguintes preceitos estão presentes:
“II – promoção da simplificação administrativa, da modernização da gestão pública e da integração dos serviços públicos, especialmente por meio da utilização de instrumentos digitais e eletrônicos;
III – promoção da comunicação aberta, voluntária e transparente das atividades das atividades e dos resultados da instituição; e
IV – direcionamento de ações para a busca de resultados para a sociedade, em busca de soluções tempestivas e inovadoras para lidar com os desafios impostos.”
Há que se perguntar: “simplificação administrativa” e “modernização da gestão pública” baseadas em que referenciais? Quais os fundamentos teóricos para a comunicação institucional? Os “resultados para a sociedade” só seriam válidos se fossem encontradas “soluções tempestivas e inovadores”?
Os indicadores associados a esses itens poderiam significar uma desobediência à autonomia administrativa das Universidades.
- Ao tratar do eixo dedicado à Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, a proposta estabelece em seu Art. 15 que: “As universidades e os institutos federais deverão implementar as medidas de incentivo à pesquisa, ao desenvolvimento tecnológico e à inovação – PD&I, previstas na Lei no973, de 2004, na Lei no 13.243, de 2016, nos respectivos regulamentos, e nos demais marcos normativos com o mesmo escopo”
A Lei No 10.973 de 2/12/2004 “Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no âmbito produtivo e dá outras providências” e a Lei No 13.243 de 11/01/2016 “Dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação e altera (…) [diversas legislações]”.
Indicadores serão estabelecidos para avaliar as medidas que foram implementadas pelas universidades e as ações desenvolvidas fazem parte da autonomia administrativa e didático-científica das Universidades.
- Como consequência da determinação anterior, de que as Universidades deverão implementar as medidas previstas nas leis citadas, diversas diretrizes estabelecidas para o eixo Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação provocam choque com a autonomia universitária. Como exemplo podemos citar: “IV – estabelecer conteúdos de propriedade intelectual e inovação de forma transversal nas matrizes curriculares nos diferentes níveis de formação”, que contraria a autonomia didático-científica e “VIII – implementar a celeridade na condução dos processos administrativos de análise e autorização das ações e projetos de PD&I, bem como a adoção de formatos padronizados de procedimentos, observando, sempre que possível, os modelos sugeridos pela Advocacia Geral da União”.
É certo que os indicadores a serem estabelecidos para o eixo 1, Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, terão o objetivo de verificar se as diretrizes do eixo foram implementadas e isto, em diversos casos, será uma desobediência ao Art. 207 da Constituição Federal de 1988.
- As diretrizes estabelecidas pelo eixo 2, Empreendedorismo, também estabelecem itens que levam a uma desobediência constitucional. Os seguintes itens possuem esta característica: “I – apoio à criação, atração, implantação e à consolidação de ambientes promotores de inovação, com foco no estabelecimento de parceria com o setor empresarial, incluídos parques e polos tecnológicos, incubadoras e startups, nos termos da Lei no973, de 2004; IV – promoção de marcas e produtos das universidades e institutos federais; VI – promoção e disseminação da educação empreendedora por meio da inclusão de conteúdos e atividades de empreendedorismo nas matrizes curriculares dos cursos técnicos, de graduação e de pós-graduação, nos termos da política institucional de inovação”.
- Em diversas ações estabelecidas para o eixo 3, Internacionalização, há desobediência à autonomia didático-científico e ao princípio da indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão (exemplos): “V – oferta de disciplinas de cursos técnicos, graduação e pós-graduação em língua estrangeira; VI – contratação de serviços de tradução ou revisão, para fins de publicação em periódicos de alto impacto; XII – implementação de acordos, convênios e programas de ensino, pesquisa e extensão internacionais que gerem resultados efetivos; XXII – incentivo à concessão de bolsas de estudo para estudantes com alto desempenho acadêmico e/ou atlético; e XXIII – facilitação de acreditação de disciplinas cursadas em plataformas ofertadas por instituições de excelência no exterior, conforme disposto em Regulamento”.
Os indicadores a serem estabelecidos darão concretude às ações como elas estão estabelecidas neste eixo 3. Só para exemplificar, qual seria a definição para “resultados efetivos” que os acordos, convênios e programas devem gerar?
SOBRE OS RECURSOS PRÓPRIOS DAS UNIVERSIDADES FEDERAIS
Nas disposições preliminares há uma referência aos recursos próprios quando no Art. 1º é afirmado, como uma das finalidades do Programa, que é o de “III – viabilizar a destinação dos recursos próprios diretamente para a respectiva universidade ou instituto federal”. Este assunto é reiterado no § 3º do Art. 9º, quando é afirmado que: “Compete ao Ministério da Educação estruturar procedimentos internos de acompanhamento do contrato de desempenho, bem como garantir que o valor referente às receitas próprias das universidades e institutos federais seja direcionado exclusivamente à respectiva instituição”.
Pela simples leitura desses dois trechos do Projeto de Lei a única conclusão que se pode levar é a de que os recursos próprios ficariam com as Universidades que as arrecadaram. Entretanto, a continuidade da leitura nos leva até ao Capítulo VII – Das Fontes Adicionais de Financiamento quando no Art. 27 são explicitadas as receitas que constituirão o Fundo Patrimonial do Future-se. Dentre elas, encontram-se:
“VIII – as receitas decorrentes da arrecadação própria das universidades e dos institutos federais, tais como:
- a) prestação de serviços compreendidos no objeto das universidades ou dos institutos federais com estudos, pesquisas, consultorias e projetos;
- b) venda de bens com a marca das universidades ou dos institutos federais;
- c) valores negociados pelas universidades e institutos federais com empresas que excedam o previsto para a execução de projetos;
- d) eventuais saldos de projetos e parcerias das universidades e institutos federais;
- e) alienação de bens e direitos;
- f) aplicações financeiras que realizar;
- g) direitos patrimoniais, tais como aluguéis, foros, dividendos, bonificações, comodatos e concessões;
- h) exploração de direitos de propriedade intelectual;
- i) acordos e instrumentos congêneres que realizar com entidades nacionais e internacionais; e
- j) matrículas e mensalidades de pós-graduação lato sensu as universidades e institutos federais.”
Finalmente, no Art. 28 torna-se explicitado o que ocorrerá com os recursos próprios das Universidades e Institutos Federais: “Deverá ser assegurado, no ato constitutivo da organização gestora, assim como no instrumento de parceria a ser firmado com o Ministério da Educação, que as receitas decorrentes de recursos próprios das universidades e institutos federais sejam alocados em contas separadas, devendo os rendimentos serem utilizados somente em projetos e programas da respectiva instituição, por meio de organização executora”.
Portanto, não são os recursos próprios que ficariam com as respectivas instituições e, sim, apenas os rendimentos desses valores! Ainda mais, a organização executora referida seria a fundação de apoio ou organização social contratada pela Universidade.
Ressalte-se que a solução para os recursos próprios serem executados nos orçamentos das Universidades Federias e não nas fundações de apoio ou organizações sociais, está em curso no Congresso Nacional, que é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) No 0024/2019 que retira os recursos próprios do montante de recursos que faz parte daqueles associados aos limites estabelecidos pela Emenda Constitucional 95/2016 que estabeleceu o congelamento das despesas primárias até o ano de 2036.
CONCLUSÃO
Portanto, pode concluir que os termos estabelecidos na nova versão do Future-se em que é preciso que a Universidade assine um Contrato de Desempenho com o MEC fere frontalmente a Autonomia Universitária estabelecida no Art. 207 da Constituição Federal e a solução apresentada para os recursos próprios das Universidades também não satisfazem os interesses das Instituições.