Depois de denúncia feita à ONU por diversas entidades brasileiras, especialistas em direitos humanos da Organização Mundial emitiram nota afirmando que o Brasil deveria abandonar imediatamente as políticas de austeridade que estão colocando vidas em risco, assim como aumentar os gastos para combater a desigualdade e a pobreza exacerbada pela pandemia da Covid-19. A Emenda Constitucional 95, do Teto de Gastos, é criticada no documento.
A nota, de 29 de abril, é assinada pelo especialista independente em Direitos Humanos e Dívida Externa Juan Pablo Bohoslavsky e pelo Relator Especial sobre pobreza extrema, Philip Alston. No texto, eles afirmam que a pandemia “ampliou os impactos adversos de uma emenda constitucional de 2016 que limitou os gastos públicos no Brasil por 20 anos”, e destaca que os “efeitos são agora dramaticamente visíveis na crise atual”.
Os especialistas observaram que, por exemplo, apenas 10% dos municípios brasileiros possuem leitos de terapia intensiva, e o Sistema Único de Saúde não tem nem a metade do número de leitos hospitalares recomendado pela Organização Mundial da Saúde.
“Os cortes de financiamento governamentais violaram os padrões internacionais de direitos humanos, inclusive na educação, moradia, alimentação, água e saneamento e igualdade de gênero”, apontam, indo além: “Já é hora de revogar a Emenda Constitucional 95 e outras medidas de austeridade contrárias ao direito internacional dos direitos humanos”.
A denúncia feita à ONU por 43 entidades da sociedade civil aconteceu em 16 de abril, em um apelo urgente direcionado também à OEA (Organização dos Estados Americanos) buscando apoio para o fim do teto de gastos sociais, que limita investimentos em saúde e educação no país.
Entre as signatárias do comunicado, destinado a cinco relatores especiais do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e à CIDH (Comitê Interamericano de Direitos Humanos), estão Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH), entre outras associações.
Vidas em risco
Os especialistas em direitos humanos da ONU expressaram repetidamente a preocupação de que a política brasileira estivesse priorizando a economia sobre a vida das pessoas. “Em 2018, pedimos ao Brasil que reconsiderasse seu programa de austeridade econômica e colocasse os direitos humanos no centro de suas políticas econômicas”, lembram os signatários do texto, voluntários que fazem parte dos procedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos – maior corpo de especialistas independentes no sistema de direitos humanos das Nações Unidas.
“Também expressamos preocupações específicas sobre os mais atingidos, particularmente mulheres e crianças vivendo em situação de pobreza, afrodescendentes, populações rurais e pessoas residindo em assentamentos informais”, acrescentam.
Os analistas condenaram, ainda, a política de colocar a “economia acima da vida”, apesar das recomendações de direitos humanos e da Organização Mundial da Saúde. “Economia para quem?”, perguntam, frisando que não se pode permitir colocar em risco a saúde e a vida da população, inclusive dos trabalhadores da saúde, pelos interesses financeiros de poucos. “Quem será responsabilizado quando as pessoas morrerem por decisões políticas que vão contra a ciência e o aconselhamento médico especializado?”.
Conforme material enviado à imprensa, citado no portal Conectas, a declaração dos especialistas foi endossada por Léo Heller, Relator Especial sobre os direitos humanos à água potável e saneamento, Hilal Elver, Relatora Especial sobre o direito à alimentação, Leilani Farha, Relatora Especial sobre o direito à moradia adequada, Dainius Pūras, Relatora Especial sobre o direito à saúde física e mental, Koumbou Boly Barry, Relatora Especial sobre o direito à educação, e pelo Grupo de Trabalho sobre discriminação contra mulheres e meninas, em nome de Meskerem Geset Techane (presidente), Elizabeth Broderick (vice-presidente), Alda Facio, Ivana Radačić e Melissa Upreti.
STF recebe pedido assinado por 192 organizações contra o teto de gastos
Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) também recebeu apelo público assinado por uma coalizão que reúne 192 organizações e redes da sociedade civil, conselhos nacionais de direitos, entidades sindicais e instituições acadêmicas de várias áreas sociais para que vote pela inconstitucionalidade da Emenda Constitucional (EC) 95. Trata-se de um estudo mais profundo após a denúncia inicial de abril à ONU e à OEA.
O documento, protocolado na quinta-feira (7), também será enviado às organizações internacionais, denunciando os efeitos da emenda no enfrentamento da crise sanitária e no cenário pós-pandemia, e ressaltando a importância do investimento em políticas sociais e ambientais como forma de dinamizar a economia – o que a emenda veta. Em vários países e blocos econômicos do mundo, o aumento do investimento social está colocado como o principal caminho para fortalecer a economia em um contexto de profunda crise global.
O documento também destaca alternativas das chamadas regras fiscais de segunda geração – que mantêm a responsabilidade fiscal, mas que também promovem responsabilidade e justiça social.
EC 95 e o corte do investimentos
Aprovada em dezembro de 2016, a Emenda Constitucional 95 estabeleceu a redução do gasto público em educação, saúde, assistência social e em outras políticas sociais por 20 anos, aumentando o desemprego, reduzindo direitos, aprofundando a miséria e acentuando as desigualdades sociais do país.
Já existem pelo menos seis Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) solicitando a revogação imediata pelo Supremo Tribunal Federal, todas atribuídas à Ministra Rosa Weber.
Estudos da Plataforma DHESCA, do Inesc/Oxfam/Centro para os Direitos Econômicos e Sociais e do IPEA, entre muitos outros, vêm demonstrando o profundo impacto da norma em várias áreas sociais, acarretando grandes retrocessos na garantia de direitos.
Em agosto de 2018, sete relatores da ONU lançaram pronunciamento internacional conjunto denunciando os efeitos sociais da Emenda e o fato do Brasil ser o único país do mundo a ter constitucionalizado a austeridade como política econômica de longo prazo.
Ainda em 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA realizou, depois de mais de duas décadas, uma visita ao Brasil para averiguar a situação dos direitos humanos. O relatório preliminar manifestou grande preocupação com o fato de o país ter uma política fiscal que desconhece “o princípio de progressividade e não regressividade em matéria de direitos econômicos, sociais e ambientais”.
Criticada no país e internacionalmente como extremamente ineficaz e destruidora das condições de vida da população, inclusive por organismos internacionais conservadores como o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), a política econômica de austeridade tem como base o entendimento de que há somente um caminho para um país sair da crise econômica: cortar gastos sociais, atacar direitos constitucionais e privatizar bens públicos.