Combate ao racismo na universidade: entrevista com o professor Alan Brito, coordenador do Neabi/UFRGS

Marcado pelo combate ao racismo, o Mês da Consciência Negra, também conhecido como Novembro Negro, reforça a importância da luta contra as desigualdades. Para analisar a importância dessa pauta, o InformANDES na UFRGS conversou com o professor Alan Brito, coordenador geral do Neabi/UFRGS, que trouxe apontamentos essenciais para a reflexão e a ação dentro e fora da universidade. Acompanhe a íntegra da entrevista:

Todos os dias, nos deparamos com fatos graves de racismo no Brasil. O que significa o Novembro Negro dentro do contexto brasileiro e na Universidade?

Dentro e fora da Universidade, o Novembro Negro nos lembra que apesar de todos os esforços dos nossos mais velhos e das nossas mais velhas, ou seja, das pessoas que vieram antes de nós, o racismo é parte fundante do tecido e contrato social brasileiro, e que as nossas desigualdades, a nossa pobreza e miséria têm explicação no elemento racial.

Professor Alan Brito/ Foto: arquivo pessoal

O Novembro Negro celebra a memória dos ancestrais do Quilombo de Palmares (e são muitos “Palmares” espalhados pelo país), mas é também uma oportunidade para ressignificarmos a luta das pessoas negras no país, recuperando o passado, a luta histórica dos Movimentos Sociais Negros, mas também nos fazendo sentir responsáveis, no presente, pela desarticulação das raízes nefastas do racismo, que fere, hierarquiza, desumaniza e mata. Trata-se de um chamamento à luta coletiva — de todas e todos nós — pelo fim do racismo no país. Pedagogicamente, também é para não nos fazer esquecer de que a luta antirracista deve acontecer todos os dias do ano e não somente nas efemérides festivas.

Particularmente na Universidade, o Novembro Negro ressalta a injustiça cognitiva e o racismo epistêmico, duas marcas dessas células de articulação do pensamento (ainda colonizador).

De que maneira é possível perceber e, ao mesmo, lutar contra o que chamamos de Racismo Estrutural na Universidade?

De cara, o racismo estrutural universitário brasileiro é notório por meio da visível subrepresentação de pessoas negras (em todos os níveis da estrutura) nesse crucial e potente espaço de poder para a transformação social e estabelecimento da democracia no país.

É, portanto, muito difícil lutar contra o que chamamos de Racismo Estrutural na Universidade sem a participação efetiva das pessoas brancas, maioria nos lugares de decisão do sistema universitário. Sem elas, o combate ao racismo estrutural/institucional é ineficiente, sabotador. Será preciso que as pessoas brancas se racializem e se vejam como raça que, numa construção social e política, ocupa sempre importantes lugares de privilégio e de responsabilidade pela alteração de sistemas históricos de opressão. Essa viagem subjetiva será necessária.

Precisamos de políticas específicas que impactem o ensino, a pesquisa, a extensão e a relação da universidade com a sociedade no que tange o combate à ideologia do racismo. Nesse sentido, as políticas de ações afirmativas, por meio do ingresso e permanência de estudantes negros e negras em cursos de graduação e pós-graduação, bem como na contratação de servidores (professores e técnicos) negros (e indígenas!) são fundamentais. A Universidade precisará se repensar, romper com suas bibliotecas, salas, gabinetes, laboratórios, museus, espaços e inter-relações coloniais.

A presença de professores negros e negras na Universidade ainda é pequena. Como tu percebes esta realidade e que medidas são importantes para alterarmos este cenário?

É um quadro assustador, quando pensamos que estamos excluindo, por exemplo, do protagonismo científico, tecnológico, artístico e literário a grande maioria da população brasileira. É a universidade pública brasileira a responsável majoritariamente não apenas pela formação de nossos quadros críticos (professoras da educação básica, artistas, divulgadores de ciências, profissionais de saúde, do Direito, da Engenharia, etc), mas também pela grande produção científica do país. Se quisermos mudar esse quadro de exclusão, precisamos, em paralelo, fortalecer a educação básica pública (ela mesma um território negro, frequentada majoritariamente por estudantes negros), garantindo que estudantes negros tenham o direito e permaneçam na escola pública gratuita e de qualidade; garantir, em nível superior, as políticas de ingresso e permanência de estudantes negros e negras em todas as áreas do conhecimento. E, mais importante, o que é um grande desafio hoje, garantir a contratação de professores/as negros/as em todas as áreas do conhecimento. Por exemplo, um passo importante é garantir a implementação da Lei 12.990/2014, que reconhece que há desigualdades no acesso aos serviços públicos federais.

Em 2003 foi sancionada a Lei 10.639/03 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação incluindo nos currículos da Rede de Ensino a obrigatoriedade da presença da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. De que forma esta Lei deve ser fazer presente nos currículos acadêmicos? Qual a importância da ERER na Universidade?

A Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER), artigo 26A da LDB, é importante na Universidade porque ela estabelece outras perspectivas teóricas, metodológicas e epistemológicas para tratar da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena (Lei 11.645/2008) em todas as áreas do conhecimento. A educação para transformar o Brasil só será efetiva se intrinsecamente antirracista, e aí reside a especialidade e a importância da ERER.

A ERER nos ajuda a des(construir) relações entre brancos (branquitudes) e negros (negritudes) e a mediar conflitos étnico-raciais que estão na base de nossas relações sociais e político-territoriais. É, portanto, uma oportunidade ímpar para reformularmos as nossas estratégias de ensino, a nossa agenda de pesquisa, as nossas relações de interação e comunicação com a sociedade e, por fim, fundamental para reposicionarmos o papel da Universidade pública na construção de um outro país, em que as pessoas negras não sejam mais “alvos” das políticas de morte. Não é, assim, uma política “meramente identitária”. Ela está na base da democracia, em seu sentido mais amplo, ligado à ampliação de cidadania.

A Lei 10.639/03 deve ser estrutural e estruturante, em todos os cursos de graduação (licenciaturas e bacharelados) e pós-graduação, currículos acadêmicos e áreas do conhecimento, articulando o ensino, a pesquisa e a extensão. Deve fugir da ideia simplista das “temáticas” ou dos “apêndices” de disciplinas esporádicas para apenas fazer constar.

Recentemente acompanhamos o lançamento do curta metragem “Cotas: uma porta aberta” que trouxe uma leitura dos 10 anos de políticas afirmativas na UFRGS. Estes também é um momento de avaliação no Congresso das Políticas Afirmativas.  Como percebes a importância das Políticas Afirmativas na Universidade, seus impactos, avanços e o que temos ainda a avançar?

Não haverá justiça cognitiva no Brasil sem, principalmente, a implementação de políticas afirmativas na Universidade, que tem funcionado historicamente como um “lugar reservado” para pessoas brancas (homens, heteros e cisnormativos predominantemente) e bem-nascidas do país. Já conseguimos ver o impacto das ações afirmativas implementadas nos últimos anos: a universidade não baixou o seu nível, como juravam os negacionistas do racismo, muito pelo contrário, pois além de haver hoje uma maior diversidade étnico-racial eu seus espaços, há mudanças curriculares e epistêmicas importantes em curso. Muitos jovens negros já conseguiram mudar não apenas a sua própria vida, mas também a da sua família e de sua própria comunidade.

A Universidade e as instituições têm também avançado nas políticas de combate às fraudes no sistema de ações afirmativas (e de cotas). Mas temos muito ainda a avançar: no ingresso (ampliando as vagas) e na permanência (olhando com cuidado as trajetórias estudantis de forma integrada em dimensões sociais, econômicas, culturais e de bem estar) na graduação e na pós; na implementação e ampliação das políticas de reconhecimento dos mestres e mestras de saberes; no fortalecimento das relações e dos diálogos com os programas de pós-graduação, entendendo-os como lugares estratégicos no combate ao Efeito Tesoura (desaparecimento das pessoas negras ao longo da carreira); e, por fim, na árdua tarefa de realização de concursos públicos diferenciados para garantir a contratação de docentes negros e, principalmente, indígenas. Será preciso também avançar no acompanhamento dos egressos dos programas de ações afirmativas da Universidade e sua inserção no mercado de trabalho.

Qual o papel e importância do NEABI no combate ao Racismo?

Os Núcleos de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas das Universidades e Instituições brasileiras visam produzir, difundir e promover ações de ensino, extensão e pesquisa, explicitamente voltadas aos estudos africanos, afro-brasileiros e indígenas, por meio da articulação entre diferentes instâncias da Universidade e da sociedade. Eles funcionam como núcleos cruciais para o combate ao racismo epistêmico e institucionalizado que historicamente excluem pessoas negras e indígenas dos espaços universitários. Os NEABIs são aquilombamentos cruciais e lugares de resistência e de articulação cosmopolítica (construção de mundos) nas instituições brasileiras.

Mobilização antirracista

Para marcar o Dia da Consciência Negra, a tradicional Marcha Independente Zumbi Dandara volta às ruas de Porto Alegre neste domingo, 20 de novembro, com a presença do ANDES/UFRGS.

Organizada por um conjunto de mais de 40 entidades, a mobilização terá concentração às 16h no Largo Zumbi dos Palmares, para caminhada até a Praça do Tambor, na Orla do Guaíba.

 

(foto de abertura: Vitor Hugo Xavier/Assufrgs)