Em pleno colapso hospitalar, RS retoma cogestão e expõe ainda mais a população à Covid-19

Contrariando orientações de especialistas e entidades de Saúde e ignorando o quadro gravíssimo de internações e mortes pela Covid-19 no Estado, o governo do Rio Grande do Sul retomou o sistema de cogestão nesta segunda-feira (22). Com a medida, atividades não essenciais voltam a operar nas regiões do estado de acordo com as regras da Bandeira Vermelha, ampliando ainda mais a exposição da população ao vírus.

No último final de semana, mais 362 mortes foram contabilizadas pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), ultrapassando 16,8 mil óbitos. Outro número preocupante é o aumento de novos casos diagnosticados: mais de 11,1 mil exames positivos identificados entre sábado (20) e domingo (21), somando mais de 791 mil ocorrências da doença na região.

“Se o Brasil tivesse a mesma taxa de mortalidade do Rio Grande do Sul hoje, morreriam 5.150 pessoas de covid por dia”, alerta o infectologista Alexandre Zavascki, professor da Faculdade de Medicina da UFRGS. Para o médico, o Rio Grande do Sul é um dos estados em que há mais chances de se pegar e morrer com coronavírus hoje no Brasil.

Justiça ou política?

No sábado, 19º dia consecutivo de ocupação acima de 100% nos leitos de UTIs e com recorde de internados pelo novo coronavírus em Terapia Intensiva (2.628 pacientes), uma liminar chegou a suspender a cogestão após Ação Civil Pública impetrada por vários sindicatos, como Cpers, Sindicato dos Municipários (Simpa) e Sindisaúde.

“O momento, como dizem todas as autoridades médicas, gestores de hospitalares, infectologistas, sanitaristas e cientistas que estudam e trabalham com a pandemia, exige total foco no combate à disseminação viral. Só assim haverá a diminuição da contaminação e a cessação das mutações do vírus, circunstância que só agrava o quadro de adoecimento da população. Além de ser a única forma de dar alguma condição do sistema de saúde ganhar um fôlego para atender o número de doentes graves que só aumenta”, argumentou o juiz Eugênio Couto Terra, da 10ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre.

Contudo, no dia seguinte a Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul (PGE-RS) conseguiu derrubar a decisão. O governador Eduardo Leite argumenta que impôs medidas mais duras na bandeira vermelha, – as quais basicamente se resumem a proibir atendimentos presenciais nos finais de semana e diariamente entre 20 horas e 5 horas.

Lockdown pouparia até 1,7 mil vidas

Apenas em Porto Alegre, um lockdown de duas semanas evitaria quase 47 mil infecções por coronavírus e salvaria 938 vidas, conforme estudo do professor Álvaro Krüger Ramos, do Instituto de Matemática da UFRGS. De acordo com o pesquisador, três lockdowns de 14 dias poupariam 1.791 vidas (detalhes na imagem abaixo).


Fonte: Estudo de Álvaro Krüger Ramos, professor de Matemática na UFRGS

 

O número de infecções impedidas e de vidas salvas é conservador, e parte do pressuposto de que 2% das pessoas com coronavírus morrem. Médicos afirmam que, com a sobrecarga hospitalar e a grande fila de espera por um leito, cresce o risco de morte para um indivíduo doente.

“Ter 60% da população em casa é um índice atingível: em março [de 2020], Porto Alegre ficou com índices de isolamento social nesse patamar por algumas semanas. Isso foi o responsável por termos achatado a curva da epidemia e ficado março, abril e maio sob controle na cidade”, afirma o docente em reportagem do portal Gaúcha ZH, destacando que, para a medida ter efeito, governos precisam fornecer suporte econômico à população.

“O lockdown diminui a circulação dos casos ativos. Quanto mais diminuirmos o número de casos ativos, mais voltamos atrás no tempo. Aí, quando as pessoas voltam às atividades, há menos chance de pegar o vírus. Estamos agora em um segundo momento da pandemia, com a variante P1. Onde ela entrou, houve crescimento exponencial, como se a pandemia tivesse reiniciado”, acrescenta o professor.

O Rio Grande do sul é o quarto estado brasileiro em número de infecções no país. “Essa é uma doença em que os pacientes já chegam com demanda de UTI, por isso ela é tão séria. E a mortalidade em UTI é muito alta, entre 66% e 75%. Abrir mais leitos é na verdade enxugar gelo. Então, recomendamos lockdown”, frisa o médico Ricardo Heinzelmann, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, que atua no hospital-escola da Universidade Federal de Santa Maria. A diretoria gaúcha da entidade emitiu um comunicado recomendando restrições ainda mais duras do que as atuais.

Descaso

Por enquanto, apenas 6,6% da população gaúcha recebeu a primeira dose da vacina contra a covid-19, enquanto é crescente o medo da falta de medicamentos e equipamentos essenciais para o tratamento da doença em hospitais e demais instituições.

“Está nos assombrando a falta de medicamentos. Temos na rede um consumo de 700 a 800 ampolas de rocurônio (anestésico usado na entubação) e o estoque dá para três ou quatro dias. Acionamos os fornecedores e não nos dão retorno. Não sabemos se vão fornecer ou não, se dali a três dias vai faltar medicamento. Eu sinto muito pela minha emoção, mas eu acho que não dá mais. Estou vendo a sociedade se movimentar para voltar a circular e não entendo. Estamos vendo as pessoas morrerem. Famílias indignadas porque não conseguem atendimento. Ontem perdemos um paciente de 32 anos que não precisaria morrer se tivéssemos condições, estrutura. Os hospitais estão fazendo a sua parte, duplicando, triplicando a capacidade, cancelando férias. Não vamos dar conta. Essa conta não é dos hospitais, é de quem toma as decisões. Quantas pessoas nós vamos ver morrer? E essa conta para os nossos funcionários?”, pontuou o diretor-geral de Operações do Divina Providência, José Clóvis Soares, ao jornal Zero Hora.

“Do ponto de vista médico, [a reabertura das atividades econômicas] é inexplicável”, enfatiza Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. “Vai se morrer em casa. E se tiver leito, não existe mais como garantir um bom atendimento, não tem mais como manter uma boa qualidade assistencial. Não tem mais o que ser feito nos hospitais. Falta equipamento. Se não faltar equipamento, faltam profissionais. E se não faltar profissionais, falta qualidade no atendimento”, alerta o médico, responsável pelos testes clínicos no Hospital de Clínicas com a vacina de Oxford/AstraZeneca.