Em mais uma atitude de intimidação contra os servidores, o governo federal reencaminhou, em março deste ano, o Manual de Conduta do Agente Público Civil do Poder Executivo para todos os trabalhadores do serviço público. Sem qualquer consideração de contexto, a mensagem chegou poucos dias após a divulgação de que os professores Eraldo dos Santos Pinheiro e Pedro Hallal, respectivamente ex-Pró-reitor e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), assinaram termo de ajustamento de conduta (TAC) em decorrência de tecerem críticas a Bolsonaro em uma atividade em redes sociais vinculadas à UFPel.
O documento havia sido, publicado em junho de 2020 pela Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, quando foi enviado ao quadro, e chama a atenção ter sido novamente disparado em tempos de ataques massivos a servidores e servidoras.
“A retomada da confiança no Estado passa por uma postura cada vez mais zelosa e atenta de todos que atuam na administração pública. É necessário dar o exemplo e demonstrar em todas as oportunidades profissionalismo e compromisso com a coisa pública, priorizando o interesse de todos em contraponto ao interesse de alguns, sejam eles particulares, corporações ou grupos específicos”, profere o material, que se diz ancorado na previsão contida no art. 3º do Decreto 9.203, de 22 de Novembro de 2017, segundo o qual a integridade é um princípio da governança pública.
Para Fábio Meira, professor da Escola de Administração da UFRGS que atua em áreas como Ética e Responsabilidade Social, já nas primeiras linhas do texto é possível identificar os pressupostos que levaram à sua publicação, como reforçar “o comportamento profissional e cívico”, “a cultura de alto desempenho” e o “fortalecimento da confiança da sociedade no serviço público”.
“Caberia perguntar, portanto, devemos seguir o exemplo de quem?”, pondera o docente. “Quais seriam os arautos da coisa pública, que fortalecem a confiança da sociedade no serviço público? As reformas promovidas pelos mesmos que publicaram o manual falam por si. No caso das universidades, bastaria retomar declarações de ministros da Educação para entender que seu comportamento seria glosado pelos princípios constantes no primeiro parágrafo do Manual! No caso da saúde, os números também falam por si”, acrescenta.
Intimidação
Ariston Azevêdo, que também é professor da Escola de Administração, pondera que o Manual poderia vir a ser instrumentalizado “como peça justificadora para sanções e banimento de servidores que fazem uso legítimo do contraditório às ordens de seus superiores”.
“Os órgãos e entidades deverão encorajar os agentes públicos a reportar qualquer desperdício de recursos públicos, fraude, abuso de autoridade, desrespeito à lei ou qualquer tipo de inobservância deste manual”, orienta a cartilha, que também condena aquilo de chama de “permitir que interesses ou conceitos de ordem pessoal, corporativistas ou político-partidários interfiram no trato com o público ou com qualquer agente público”.
“Esse ponto é importante, sobretudo quando tem sido expressamente posta por figuras de destaque do governo e pelo próprio chefe do Executivo, a ideia de que toda a estrutura estatal estaria permeada por infiltrados ideológicos de esquerda, ou seja, aparelhada por comunistas, o que, de partida, coloca todos os servidores sob suspeita, indistintamente”, alerta.
Ele menciona o episódio de cerceamento de Pedro Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro.
O extrato do termo afirma que Pedro Hallal proferiu, em janeiro, “manifestação desrespeitosa e de desapreço direcionada ao Presidente da República, quando se pronunciava como Reitor” durante transmissão ao vivo de Live nos canais oficiais da UFPel, “que se configura como ‘local de trabalho’ por ser um meio digital de comunicação online disponibilizado pela Universidade”.
“Condutas inadequadas”
A situação da UFPel é uma das contempladas pelo item “Condutas Inadequada” do Manual. Esse item admoesta os servidores contra “realizar publicação, nas redes sociais oficiais do órgão ou entidade em que esteja em exercício, de assuntos que não possuem pertinência temática com as atribuições do órgão ou entidade” e “utilizar logomarca ou qualquer imagem oficial do órgão ou entidade em que exerça suas funções ao emitir comentários em redes sociais, ainda que em conta particular, atingindo negativamente a imagem do respectivo órgão ou entidade perante a sociedade”.
“Ora, particularmente no caso do exercício da profissão docente, por exemplo, que é um exercício crítico por excelência, dentro ou fora da sala de aula, tais medidas são temerárias, pois trazem dubiedades que, se encaminhadas para determinada linha, podem legitimar atos de perseguição, tanto fora quanto dentro dos muros universitários”, lembra Ariston.
Trabalho Remoto
O professor Ariston também questiona as normas de conduta indicadas para o Trabalho Remoto – modelo que passou a ser padrão para a grande maioria dos servidores públicos com a pandemia de Covid-19.
“O manual me parece pouco sensível à realidade domiciliar em que o trabalho remoto do servidor público em geral é realizado. Distante da oferta, por parte do próprio governo federal, das condições ótimas para sua realização – ou, no mínimo, similares àquelas disponíveis no ambiente normal de trabalho nas repartições públicas –, esses servidores são alertados para o fato de que seu ‘trabalho remoto, não pode, em hipótese alguma, gerar perda de eficiência por parte do serviço público’. Para tanto, as chefias são reclamadas para acompanhar de perto esse desempenho”.
Como condutas exigidas para o trabalho remoto, o material lista, por exemplo:
a) estar disponível nos horários ajustados e comprometido com as entregas pactuadas;
b) não agir de maneira desidiosa, desatenta ou descompromissada;
c) responder aos contatos de sua chefia dentro do horário da jornada de trabalho;
d) não exercer qualquer atividade incompatível com o exercício do cargo ou função no horário de trabalho;
e) zelar pela segurança dos dados e informações transmitidas e compartilhadas;
f) adotar postura adequada e profissional durante a realização de videoconferências e reuniões virtuais.
“Como se pode perceber, as condutas exigidas partem da suposição de que a casa e as repartições operam de igual maneira e dinâmica. Talvez nem mesmo pessoas que moram sozinhas consigam tender a essas exigências, quem dirá pais com filhos(as) pequenos(as) que não estão frequentando as escolas e reclamam atenção incessantemente”, avalia o docente.
Ameaça inconsistente
O professor Guilherme Dornelas, diretor do ANDES/UFRGS, reforça que o Manual não é um instrumento legal, sendo impotente para exercer a pressão a que se propõe. “Além da lógica empresarial que permeia o texto, há uma demonstração clara de desconhecimento do código de ética dos servidores públicos”, esclarece.
O docente se refere ao Decreto 1.171, de 22 de junho de 1994, que também dispões sobre condutas de trabalhadores e trabalhadoras do Poder Executivo Federal. “É sim uma tentativa de ameaça às/os servidoras/es públicos, mas sem um fundamento de substância em que se possa basear; o que reforça o fato do manual ser pura perseguição a servidores que ousam se manifestar em oposição ao governo federal”, conclui Guilherme.
Caso qualquer colega se sinta constrangido, pode recorrer à assessoria jurídica do ANDES/UFRGS.