A recente denúncia do Ministério Público Federal(MPF) contra o jornalista Glenn Greenwald, fundador do portal The Intercept Brasil, está sendo criticada por especialistas de diversas áreas. Considerada uma ameaça à liberdade de imprensa, a medida, segundo advogados, não se sustenta e configura um ataque ao sigilo de fonte, direito assegurado pela Constituição Federal.
“O sigilo de fonte não existe a favor do jornalista, mas da sociedade. O trabalho do jornalista é protegido contra o Ministério Público e contra o juiz. O sigilo de fonte é um escudo da sociedade civil. Por exemplo, se o jornalista tiver que investigar o tráfico de cocaína, talvez tenha que conversar bastante com o traficante, tenha que criar confiança nele. Essa atividade é prevista pela Constituição e o jornalista precisa desse sigilo para fazer seu trabalho”, explica Walter Vieira Ceneviva, ex-presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), em reportagem do jornal O Globo.
Para o advogado Vitor Souza Lima Blotta, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do grupo Jornalismo, Direito e Liberdade, a denúncia só se justificaria se o Ministério Público encontrasse provas de que o jornalista teria praticado ele mesmo as invasões.
“A acusação é ilegal e inválida, pois fere o sigilo de fonte e descumpre a liminar do ministro Gilmar Mendes. Ao se depararem com as mensagens, caso entendendo haver ilegalidade, os procuradores deveriam ter pedido a revogação da liminar que proíbe a investigação dos atos de Glenn no caso. E, se concedida, entrar com outra ação. Houve erro de procedimento, e ao que parece, uma tentativa de ‘culpar o padre por ouvir a confissão’, guardadas as diferenças”, esclarece.
Acusação infundada
Glenn foi denunciado pelo procurador Wellington Oliveira na terça-feira (21), sob acusação de participar dos crimes de interceptação ilegal de comunicações e invasão de dispositivo informático alheio, e também por associação criminosa. As penas variam de um a quatro anos de prisão.
Contudo, no diálogo citado na denúncia, o jornalista inclusive se recusa a aconselhar o hacker. “É difícil porque eu não posso te dar conselho, mas eu tenho a obrigação para proteger meu fonte (sic) e essa obrigação é uma obrigação pra mim que é muito séria, muito grave, e nós vamos fazer tudo para fazer isso, entendeu?”, afirma Glenn Greenwald.
“A participação em delitos exige a instigação ou a colaboração nos fatos e nenhuma mensagem de Glenn [transcrita na denúncia] trata disso”, explica o professor da USP.
Responsável por vazar informações de agências de inteligência dos Estados Unidos a Glenn e outros jornalistas – o que gerou uma série de reportagens premiadas pelo jornal The Guardian com o prêmio Pulitzer, o maior do jornalismo –, Edward Snowden também criticou a ação do Ministério Público Federal. “Trata-se de uma retaliação inacreditavelmente descarada por uma revelação de corrupção extrema nos mais altos níveis do governo Bolsonaro, e uma ameaça existencial ao jornalismo investigativo no Brasil”, manifestou-se em rede social.
Abuso de autoridade
Os diálogos utilizados pelo Procurador para justificar a denúncia já haviam sido analisados pela Polícia Federal (PF) anteriormente. Na ocasião, a conclusão foi de que não era possível identificar “participação moral e material” do jornalista nos crimes investigados. Ao oferecer a denúncia, o procurador Wellington Divino Marques de Oliveira também ignorou liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que vetava investigações contra Glenn pelo seu trabalho como jornalista.
“Causa perplexidade que o Ministério Público Federal se preste a um papel claramente político, indo na contramão da ausência de indícios informada no inquérito da Polícia Federal”, destaca nota publicada pelo Intercept.
“Não existe democracia sem jornalismo crítico e livre. A sociedade brasileira não pode aceitar abusos de poder como esse”, acrescenta o texto.
Conforme juristas ouvidos pelo portal Brasil de Fato, Oliveira pode ser enquadrado na Lei de Abuso de Autoridade (nº 13.869) pela ausência de provas e uso do cargo para defender bandeiras ideológicas próprias, tentando criminalizar o trabalho estritamente jornalístico.
“Na hora que um procurador da República utiliza a sua condição de Ministério Público para apresentar uma denúncia que ele sabe que é insubsistente, que inclusive a Polícia Federal estava investigando o caso em cima dos mesmos áudios e disse que não tinha qualquer tipo de participação do Glenn, ele tem que ser enquadrado no artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade”, explica o advogado Marcelo Uchôa, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
“Ele [o procurador] está brincando de usar o múnus público [obrigação decorrente de acordo ou lei] dele para intimidar as pessoas, para coagir, para desrespeitar o Estado Democrático de Direito, para criar instabilidade jurídica, para fazer confusão na cabeça de uma massa de pessoas que são mobilizadas via rede social e fake news. A Justiça não pode servir para isso. A Justiça serve para aplicar o Direito”, analisa o advogado.
A advogada Carol Proner, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFJR) e também da ABDJ, concorda que a denúncia se enquadra em um caso de abuso de autoridade que deve ser denunciado. “É claríssima a forma intimidatória como esse procurador tenta atuar, o uso político do Ministério Público neste caso específico do procurador, deturpando o teor das gravações de uma maneira desonesta. É uma denúncia autoritária. Do ponto de vista jurídico, a questão é simples: é a liberdade de imprensa e a questão do sigilo da fonte, já garantida pelo Supremo Tribunal Federal e garantido pela Constituição como exercício da profissão”, enfatiza.
A advogada ressaltou que Wellington de Oliveira tem histórico de perseguir pessoas que ele considera inimigas do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro – o procurador já havia feito denúncias sem provas, como aquelas contra o ex-presidente Lula e contra o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz.
Apoio à liberdade de imprensa
Diversas autoridades e entidades brasileiras se manifestaram a favor de Glenn e da liberdade de imprensa após a oferta da denúncia do MPF.
A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) protocolou uma representação no MPF pedindo que o procurador seja enquadrado na recém-criada lei de Abuso de Autoridade. Em nota, a entidade destacou que foi justamente o uso do aparelho do Estado em desrespeito aos direitos dos cidadãos que levou à aprovação da lei.
De acordo com a representação, a acusação do procurador “tenta criminalizar a livre manifestação do pensamento e a divulgação de informações, atingindo em cheio o direito fundamental à liberdade de expressão, liberdade de informação e liberdade de imprensa (art. 5º, incisos IV e IX, e art. 220 da CF)”.
Também em nota, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) reforçou o entendimento de que a denúncia viola a liberdade de imprensa. “É um absurdo que o Ministério Público Federal abuse de suas funções para perseguir um jornalista e, assim, violar o direito dos brasileiros de viver em um país com imprensa livre e capaz de expor desvios de agentes públicos. A Abraji repudia a denúncia e apela à Justiça Federal para que a rejeite, em respeito não apenas à Constituição, mas à lógica”, diz a diretoria da associação.
O jornal The New York Times também se posicionou a favor do jornalista e do exercício de sua profissão ao publicar um editorial, nesta quarta-feira (22), defendendo a liberdade de imprensa. “A denúncia do governo brasileiro contra o jornalista americano Gleen Greenwald é um caso cada vez mais familiar de atirar no mensageiro e ignorar a mensagem”, manifestou-se o periódico.