Comentários iniciais sobre o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, por Enrique Serra Padrós*

*Prof. Enrique Serra Padrós – Dpto de História do IFCH da UFRGS

Uma primeira aproximação ao Relatório apresentado pela Comissão Nacional da Verdade permite apontar algumas questões que, embora possam parecer um tanto óbvias, possuem a legitimidade do primeiro esforço institucional para esclarecer, mesmo que parcialmente, parte do passado ditatorial do Brasil recente.

  • As informações contidas no Relatório permitem confirmar que a Ditadura foi na sua essência repressiva, muito mais ampla, extensa e intensa do que se afirmou durante décadas, configurando uma lógica de Terrorismo de Estado.
  • De forma específica acrescenta como alvos diretos da repressão estatal e sua política de extermínio, centenas de lideranças camponesas e indígenas, fato anteriormente tratado como nebuloso ou diluído pelas sombras da desinformação ou do encobrimento dos crimes.
  • Informa-se, também, com importante grau de precisão, sobre uma cartografia de centros de tortura – legais ou clandestinos – espalhados por todo o país. Desenha-se, assim, uma complexa estrutura que aponta para a responsabilidade do Estado e seus organismos vinculados, tanto na manutenção desses centros quanto no posterior apagamento dos registros da sua existência ou das atividades ilegais ali realizadas.
  • Contribui, em termos de informação, com a abertura para o tema da colaboração e participação dos civis nos diversos espaços de poder (não somente na dimensão repressiva); introduz, inclusive, a participação de setores empresariais no processo que leva à deflagração do Golpe quanto na consolidação e manutenção da Ditadura. Implica, evidentemente, a questão do financiamento do Golpe e a obtenção de benefícios com a implantação da Ditadura.
  • A falta de visibilidade da colaboração das Forças Armadas com os trabalhos da CNV confirma o grave problema que persiste em uma instituição que reafirma uma conduta antidemocrática ao omitir informação e negar sua participação na perpetração de crimes de lesa humanidade.
  • Fica confirmado, também, não só a participação da Ditadura Brasileira nos esquemas de conexão repressiva, como o fato de que ela teve iniciativa própria no estabelecimento de bases para o funcionamento dos esquemas de coordenação extra-fronteiriça dos quais a Operação Condor foi a mais sofisticada.

Por fim, cabem algumas palavras sobre as recomendações da CNV. Merece destaque, sem dúvida o posicionamento firme de que é necessário punir os culpáveis pelos crimes de lesa humanidade, rejeitando a premissa de que a Lei de Anistia protege os agentes do Terrorismo de Estado. Da mesma forma, deve-se salientar uma recomendação fundamental: a modificação dos currículos escolares das academias militares. Junto com isso há recomendações variadas visando medidas de reparação das vítimas. Em parte, isso já está ocorrendo, o que não invalida o impacto político e psicológico da proposição.

Contudo, o resultado global dos trabalhos realizados pela CNV se mostra insuficiente em muitos quesitos. As críticas realizadas desde as organizações de direitos humanos e de familiares são pertinentes, pois o objetivo principal da CNV devia ser a obtenção de informações concretas que pudessem devolver os corpos dos cidadãos executados e desaparecidos às famílias. Nesse sentido, os resultados são pífios. Da mesma forma, existe muita controvérsia quanto à exclusão de nomes nas listas daqueles que foram vítimas da repressão direta ou indireta do Estado; isso vale no caso dos desaparecidos políticos e dos camponeses assassinados.

De qualquer forma, um passo importante foi dado e o Relatório da CNV constitui um instrumento para prosseguir na luta contra os crimes cometidos pela Ditadura, contra o esquecimento induzido e pela exigência de Justiça. Aliás, cabe lembrar, finalmente, que essa luta não começou com a CNV nem com os governos petistas. Há um longo processo e protagonismos anteriores que não podem ser ignorados; a própria Comissão Nacional da Verdade resultou da denúncia que os Familiares de Mortos e Desaparecidos fizeram nas instâncias internacionais. Portanto, com o fim dos trabalhos da CNV se encerra uma etapa desse longo processo que continua totalmente em aberto e que tem como horizonte mais significativo o dilema da atuação da Justiça.