A proposta de Reforma Administrativa (PEC 32/2020) promete acabar com privilégios mas, na verdade, favorece militares, políticos, magistrados e procuradores. O projeto também é conhecido como PEC da Rachadinha, pois exclui a estabilidade dos servidores públicos, normaliza outras formas de contratação de pessoal na administração direta e cria a função chamada “cargo de liderança e assessoramento” para apadrinhados políticos, elementos que podem favorecer a prática criminosa de políticos ficarem com parte dos vencimentos das pessoas a quem indicam para ocuparem cargos públicos.
Na prática, configura mais uma ação de precarização dos serviços públicos, sob a falsa justificativa de corte de gastos. Em meio à pressão do governo federal para apressar a aprovação, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), afirmou que a tramitação está paralisada devido às condições excepcionais impostas pela pandemia de Covid-19.
“O horizonte dessa Reforma é de uma catástrofe social para o Brasil e para os brasileiros, e não somente para os servidores. Isso está passando batido”, aponta o professor de Administração Pública e Social da Escola de Administração (EA) da UFRGS Pedro de Almeida Costa. Leia a íntegra da entrevista abaixo.
Quais as principais alterações propostas pela Reforma Administrativa no serviço público?
Me parecem três grupos principais de mudanças.
Em primeiro lugar, do ponto de vista das carreiras e do serviço público, as propostas se valem de mitos sobre o tamanho e sobre a ineficiência do serviço público para precarizar. Comparam a média de vencimentos com os empregados do setor privado para vender à população a ideia de que o servidor público é privilegiado: ganha mais e nunca é demitido, mesmo que não trabalhe bem.
Assim, com essa justificativa para fazer ataques a direitos, extinguem-se adicionais e promoções unicamente por tempo de serviço, modificam-se as formas de ingresso e de estágio probatório (que se transformaria em mais uma etapa de seleção), instituem-se três possibilidades de demissão (com critérios a serem definidos em lei ordinária), exclui-se a possibilidade de incorporação de cargos e funções exercidas.
A PEC também aumenta a discricionariedade do chefe do poder executivo para mexer na estrutura administrativa (por exemplo, pode-se extinguir o Ibama e se demitir todos servidores, se isso interessar ao presidente da República), o que não parece alvissareiro vindo de um governo especialmente autoritário e submisso ao agronegócio, a pautas evangélicas e abertamente armamentista, que tem vontade de derrubar pautas e lutas históricas no meio ambiente, educação, direitos humanos, entre outros.
Em segundo lugar, a PEC não regula aquilo que reformula, como esses pontos levantados acima. Questões muito sensíveis como os critérios de demissão ou de contratação de “lideranças” serão tratados por lei complementar, o que significa dizer um processo legislativo bem mais expedito, sem as duas sessões e cada casa legislativa e sem necessidade de se ter dois terços dos votos em cada uma. Parece que o governo quer uma espécie de “cheque em branco” para depois usar suas práticas clientelistas para aprovar atrocidades. Já vimos esse mecanismo no Future-se e soubemos lutar contra ele.
Por último, a Reforma apresenta mudanças nos princípios de Administração. Dos atuais cinco princípios (Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência – este último acrescido na onda neoliberal das reformas do governo FHC), pula-se para 13, abrindo espaço para a pauta e para a gramática privatista, como governança e inovação, e para um ataque central à sociedade brasileira, que é o princípio da subsidiariedade.
Como ela deve impactar nas IFEs e na carreira docente?
Um dos pontos criados é carreira “típica de Estado” que não permite outros vínculos, enquanto as demais permitem. Se o docente do magistério superior entrar nessa lista flexível (que será definida em lei complementar), ataca-se o instituto da Dedicação Exclusiva na nossa carreira, que já tem sido longa e largamente desgastada, sem contar que a carreira que não for “típica” não terá estabilidade – o que é péssimo para a carreira acadêmica e científica, que demanda maturidade e tempo.
Também a proposta de forma de ingresso para cargos de “liderança e assessoramento” (leia-se cargos de confiança e de indicação política nomeados pela gramática gerencialista) abre espaço para que na própria universidade pública e Institutos Federais se justifique esse tipo de nomeação com ares de intervenção.
O que significa o princípio da subsidiariedade e como, se instituído, ele afetará o serviço público?
Ele afeta mais a sociedade do que o serviço público, pois determina que, ao contrário do que ficou marcado como o grande avanço da Constituição de 1988, o Estado não é mais responsável por garantia direta de direitos, mas que ele passa a atuar subsidiariamente em relação a outros atores sociais, como o Mercado e a própria Sociedade. É o “cada um por si”, em que o Estado mínimo passa a ser preceito constitucional, com implicações futuras que não podem ser previstas, mas que vão estar marcadas pela miséria e precarização absolutas, seguidas, provavelmente, de muita violência e repressão.
Socialmente, o que significa militares e magistrados estarem excluídos das alterações?
Assim como já aconteceu na Reforma Previdenciária, as poucas ilhas de reais privilégios que existem na administração pública seguem intocadas, como poder judiciário e legislativo e as carreiras militares (as que de fato tinham desequilíbrios atuariais na previdência). Significa que é mais uma contrarreforma feita “por cima”, com base em grandes acordos entre elites públicas e privadas que querem (e conseguem) se apropriar do Estado para sempre aprofundar ganhos e privilégios.
Mais de 80% dos servidores públicos no Brasil estão nos municípios e recebem média de três salários mínimos. Cerca de dois terços deles atuam diretamente em educação, saúde, segurança e outros serviços diretos ao cidadão. São setores intensivos na presença humana (servidores) e que afetam diretamente a vida da maior parte da população brasileira.
Num país ainda de extremas desigualdades, concentração de renda e patrimônio, com sistema tributário injusto, alocação pública de recursos que privilegia o rentismo, e que voltou ao mapa da fome mundial, um Estado forte e garantidor de direitos básicos seria essencial para – ao menos – mitigar os efeitos dessa desigualdade. O horizonte dessa Reforma é de uma catástrofe social para o Brasil e para os brasileiros, e não somente para os servidores. Isso está passando batido.
Existem exemplos de outros países que implementaram projetos semelhantes que tenham obtido resultados positivos? E negativos?
Exemplos recentes de reformas nessa linha, com demissão e precarização das carreiras de serviços públicos aconteceram na Grécia e mais recentemente na Argentina, com resultados perversos. Sem contar o Chile, que há gerações sofre com modelo (para o qual Paulo Guedes contribuiu durante a ditadura de Pinochet) que privatizou a previdência pública e hoje paga pensões que estão levando aposentados a se suicidarem. Essa fúria fiscalista que levanta a bandeira da austeridade quase nunca resultou em melhoria econômica mínima onde quer que tenha sido implementada.
Se o Estado quisesse realmente economizar com servidores, teria que atacar as ilhas de real privilégio no serviço público. Caso contrário, até para fins de recuperação econômica e crescimento, a medida de reduzir a massa de trabalhadores no serviço público (que no Brasil é inferior à média da OCDE em proporção de servidores e proporção de gasto público) só pode trazer mais depressão econômica e crise social.
Em meio às diversas medidas de precarização aplicadas pelo governo federal, o que se pode esperar da educação pública em médio e longo prazo? Há formas de reverter esse quadro?
A proposta de PEC mostra que prevalece uma visão tacanha que olha para a educação como gasto, e isso, infelizmente, reverbera em vários espaços. Basta lembrar os ataques e retrocessos na educação básica em Porto Alegre nos últimos anos.
Paradoxalmente, as mesmas pessoas e partidos que fazem tais ataques, defendem crescimento econômico e desenvolvimento via inovação (que também entrou na lista de princípios de Administração Pública da proposta) igual ao de países desenvolvidos, nos quais o investimento massivo em educação há décadas é que tem sustentado, de par com práticas colonialistas na economia, suas trajetórias positivas na educação e no desenvolvimento econômico e social.
Temos uma juventude nova nas universidades públicas e Institutos Federais cuja disposição de luta, somada à de docentes e servidores técnico-administrativos, pode ser uma notícia alvissareira para a necessária resistência. A forte manifestação contra o Future-se em 2019 mostrou isso, e precisamos nos reorganizar e mobilizar em meio à pandemia para dar conta desses ataques que não parecem cessar.
Existe um rombo orçamentário? Se sim, é possível diminuí-lo sem prejudicar os servidores e a população? Seriam ações viáveis politicamente no Brasil?
O rombo é uma palavra dramática que cria uma imagem negativa. Há déficit que precisa ser ressignificado como alavancagem do Estado (que pode emitir moeda, por exemplo) para desenvolver o país. A economia dos Estados Unidos é deficitária há décadas, e o volume de crédito privado equivale a 120% do PIB – e isso serve ao Mercado porque mantém dinamismo daquela economia. Claro que o déficit é controlado e planejado, e obviamente que deve se buscar a eficiência dos serviços públicos e o máximo de equilíbrio fiscal, mas isso é bem diferente do que se passa no Brasil, onde rentistas querem a arrecadação livre para alimentar juros abusivos e sem fim que fazem a sua riqueza sem trabalhar. Não se trata de defender uma suposta “irresponsabilidade fiscal”, mas de entender a necessidade da ação do Estado (de novo: só ele pode emitir moeda) para mitigar questões emergenciais como a que vivemos na pandemia, ou para alavancar crescimento, através de investimentos e programas, ou ainda para manter determinados circuitos econômicos ativos. O Brasil tem cerca de 11 milhões de servidores públicos. Na maioria dos pequenos municípios (88% deles têm menos de 50 mil habitantes) a economia é sustentada por servidores públicos, pensionistas/aposentados e outros beneficiários de transferência de renda, e uma mudança qualquer nesses segmentos pode implodir a vida no lugar.