Casa do Estudante Indígena: mais uma luta pela universidade socialmente referenciada

A luta por uma universidade socialmente referenciada não é um slogan, mas uma reivindicação concreta da comunidade acadêmica, que se dá em inúmeras frentes. Após anos de movimentações, os estudantes indígenas conquistaram, recentemente, um espaço próprio na UFRGS.

Uma intensa mobilização foi desencadeada em março deste ano, com apoio de diversas entidades e movimentos, sinalizando a urgência de uma residência específica que desse conta das especificidades de costumes e organização social indígenas. A ocupação de prédio desativado em frente ao Campus Central, em 7 de março, foi acompanhada de manifestações no prédio da Reitoria e seguida de ocupação de prédio no Campus Saúde, onde antes funcionava a Creche da UFRGS, desativada por mais de dois anos. Após muita pressão e negociações com a Administração Central, a Casa do Estudante Indígena foi inaugurada oficialmente no dia 16 de abril e hoje abriga cerca de 40 pessoas de origem Kaingang, Xokleng e Guarani, em sua maioria mães com filhos, o que não chega nem à metade do total de indígenas discentes da UFRGS.

Segundo Angelica Kaingang, uma das moradoras do local, a prioridade foi abrigar famílias de modo que pudessem criar as crianças conforme as tradições originárias, o que não era viável na Casa do Estudante (CEU), localizada na Avenida João Pessoa, onde crianças não são aceitas e não era possível manter hábitos tradicionais. “Nosso modo de viver é diferente, e precisamos ter nossa dignidade respeitada”, destaca a indígena, em entrevista concedida para esta reportagem.

Angelica lembra que a pauta de um espaço adequado aos povos indígenas é antiga, e lamenta que, até o início da pandemia de Covid-19, o movimento nunca tenha tido respaldo da Comissão de Ações Afirmativas (CAF). “Fiz a graduação inteira entre 2010 e 2016, quando já vivenciávamos essa luta. Em 2020, quando retornei para o mestrado, nada tinha mudado. Era uma violência com as mães indígenas”, lamenta.

Inclusão e continuidade

Uma das especificidades da cultura indígena é a prática de as crianças acompanharem as mães em diversas tarefas e situações. “Por muito tempo não se respeitou esses modos de vida, e se sabe da história vivida pelos povos indígenas no Brasil, onde passamos por uma tentativa muito grande de apagamento da memória. Mas muitas etnias seguem resistindo através de suas lutas, e para essa existência seguir precisávamos de um lugar de pertencimento, especialmente para as mães”, reflete Angelica.

Outra questão estava nos rituais, que seguiam vedados na habitação anterior, onde também houve episódios de preconceito – como o caso denunciado em março, quando um cacho de banana foi colocado na porta de uma estudante indígena na CEU.

“Na falta dos nossos territórios tradicionais, hoje já retomamos a possibilidade de ter um espaço com a presença de nossos Kujás, que são nossos líderes espirituais, por exemplo. Hoje, a Kujá Iracema, que nos acompanhou desde sempre nessa luta, pode vir dar seus banhos de ervas medicinais e de cura, e dispomos do fogo de chão, que para nós é muito importante. Aos poucos temos transformado nosso lugar, o que já inclui até o nome” – uma homenagem à representatividade das mulheres e à terra.

Cotas

A inclusão de docentes indígenas nos concursos também é uma pauta do movimento, que, depois da ocupação, começou a registrar aproximação de entidades como DCE e APG. “É urgente e necessário pensar os currículos incluindo esses debates. Como formar pessoas sem que tenhamos um mínimo de conhecimento sobre a raiz desse país, onde a universidade existe em um território que um dia foi lavado com sangue indígena?”, questiona a estudante, destacando que a ancestralidade também é presente, inclusive dentro da universidade.

“A raiz profunda de toda a desigualdade social está na exploração e no colonialismo, que deve ser pauta das universidades para pensarmos a sociedade. Como não abordar isso com pessoas que estão sendo pensadas para atuar nessa sociedade? Os povos indígenas têm muito a ensinar. O Brasil tem uma dívida enorme, e para respeito a essas diferenças, precisamos ter cotas”, pontua Angelica, acrescentando sua esperança de que “um dia a gente possa igualar essas sabedorias e esses conhecimentos a partir da complementariedade. Que possamos ter essa soma de diferenças pelo bem comum que, é a vida.”

A desativação da Creche

Desativada na pandemia, a Creche que levava o nome da mãe do reitor que a inaugurou, em 1972, já vinha sendo esvaziada após anos de omissão da Universidade frente às mudanças estabelecidas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, aprovadas em 2009 (Resolução nº 5 CEB/CNE). Enquanto outras universidades criaram suas Escolas Públicas de Educação Infantil, espaços de estágio e de pesquisa, abertas à comunidade conforme a nova legislação, a UFRGS iniciou um processo de terceirização de professores e de precarização do serviço. Em 2017, após autuação pelo Ministério do Trabalho, foi encerrado contrato de terceirização, e o atendimento foi drasticamente reduzido. Em julho de 2017, apenas 35 crianças frequentavam a creche em turno parcial. Leia mais aqui.