Carreira docente: recente conquista, crescentes ataques

 

Conquistada em 1987 pela força da luta da categoria, a carreira docente vem colecionando ataques e perdas salariais há duas décadas. Desde o governo Collor (1990-1992), direitos têm sido retirados ou reduzidos com mudanças nos regimes de Dedicação Exclusiva, quebra da paridade entre ativos e aposentados e distanciamento das carreiras entre os graus de ensino e formação. Com a posse de Jair Bolsonaro, a profissão tem sido alvo constante de medidas que não apenas atingem diretamente o ensino, a pesquisa e a extensão e travam o funcionamento de Instituições Federais de Ensino, como desvalorizam e desconsideram a importância da atividade para a sociedade e o desenvolvimento econômico.

As mais recentes são diversas normas emitidas em 2020, divididas em portarias e ofícios, que tratam de dotação e execução orçamentária – especialmente das despesas com pessoal ativo e inativo. Como consequência, educadores vivem a ameaça de suspensão de pagamento de gratificações, substituição de chefias, promoções, retribuição por titulação, entre outros adicionais que já foram criados como forma de reduzir o salário em folha, aumentando a instabilidade salarial. Além disso, nomeações e contratações foram interrompidas por muitas instituições até que se tenha uma solução para as determinações do Ministério da Educação (MEC), elevando ainda mais o déficit nos quadros de pessoal – já agravados em função do aumento de pedidos gerados pela Reforma da Previdência, que também impacta a categoria.

“O governo Bolsonaro é o primeiro na história a lançar um ataque não só à questão salarial e de carreira docente, o que já é grave, mas à própria natureza da docência. É um ataque autoritário ao fazer docente, à natureza da própria instituição de ensino e à liberdade de cátedra”, lamenta o presidente da Aprofurg, Cristiano Engelke.

O ANDES-SN, juntamente com Fasubra e Sinasefe, protocolou na Justiça uma Ação Civil Pública contra as medidas na última terça-feira (18/2). Na ação, as entidades apontam uma “afronta ao direito social fundamental à educação e à autonomia das Instituições Federais de Ensino”, e destacam que não se pode conceber interferência direta do Executivo “na gestão administrativa, financeira e patrimonial de entidades autônomas, com as quais o Ministério se relaciona por intermédio da vinculação, e não da subordinação”, mesmo que se considere a necessidade de atenção às questões orçamentárias para fins de admissão de pessoal.

Do estímulo ao desenvolvimento à desvalorização

Inicialmente prevista para ser gerida no âmbito da autonomia universitária pelo Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos (PUCRCE), a carreira docente previa o estímulo ao desenvolvimento profissional de forma equilibrada, considerando o tempo de serviço, a formação continuada e a valorização da Dedicação Exclusiva como regime de trabalho preferencial.

Hoje, contudo, além da desvalorização profissional e financeira, os docentes federais sofrem também com a precarização das instituições de ensino superior como um todo, gerando consequências graves à vida acadêmica, e com a falta de perspectivas em médio e longo prazo.

“A Pós-Graduação não teria o tamanho que tem hoje no Brasil se a carreira não incentivasse os professores a fazerem doutorado e se dedicarem à pesquisa, que é um dos componentes da Dedicação Exclusiva”, pontua Elisabete Búrigo, que é professora do Instituto de Matemática e Estatística da UFRGS e diretora da seção sindical do ANDES-SN na Universidade.

Também existem diferenças entre a base e o topo da carreira, ampliadas nos últimos 13 anos, após a implementação da Lei 11.344, de setembro de 2006. No início daquele ano, por exemplo, a diferença entre a remuneração entre um nível e o próximo era de 5%. Quando foi criada a figura do Associado, no Magistério Superior o professor Associado 1 recebia 12% mais do que o Adjunto 4, e o Titular recebia 5% mais do que o Associado 4. As mesmas disparidades ocorrem na carreira EBTT.

Ao longo do tempo, Associados e Titulares foram privilegiados nas tabelas impostas por governo e Proifes. Hoje, a remuneração do Associado 1 é 25% maior que a remuneração do Adjunto 4, e a remuneração do Titular é 10% maior que a do Associado 4. “O governo economiza com o achatamento dos salários dos mais jovens, e tenta bloquear as progressões por diversos meios”, lamenta a docente.

Ataques

As perdas salariais têm sido praticadas em frentes variadas, incluindo congelamento da tabela e alterações na composição remuneratória, que passou a ser distribuída em várias gratificações – inclusive, o adicional por titulação foi excluído do corpo do salário.

Em agosto de 2019, os docentes do magistério federal receberam a última parcela dos reajustes estabelecidos pela Lei nº 13.325 de 2016, resultado de um acordo de reestruturação das carreiras entre governo e Proifes, sem participação do ANDES-SN. O reajuste anterior havia sido implementado em agosto de 2018, fruto da greve docente de 2015.

Variando conforme critérios de classe, titulação e regime de trabalho, todos os percentuais são inferiores à inflação medida pelo IGP-M do período: enquanto a maior recomposição foi de 3% (doutores Adjuntos 4 nas IFEs e professores D III, nível 4 na carreira EBTT), o índice acumulado de 12 meses foi de 6,4%.

Adjuntos A1, no entanto, receberam aumento de 0,1% e Assistentes A1, de 0,6%. Os demais doutores em Dedicação Exclusiva receberam em torno de 2,7%, e os mestres, cerca de 1,5%.

Segundo Elisabete Búrigo, do ANDES/UFRGS, os percentuais variados de reajuste agravam as distorções na carreira: além de os menores percentuais serem pagos aos docentes mais vulneráveis – em estágio probatório –, também são ampliadas as diferenças de remuneração entre mestres e doutores, o que prejudica especialmente os aposentados apenas com mestrado.

Achatamento

A remuneração da Dedicação Exclusiva também foi achatada desde 2009, quando a Lei nº 11.784 instalou a lógica das tabelas com percentuais variados de recomposição. O Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos (PUCRCE), reformulado em 1989, garantia ao docente deste regime remuneração correspondente ao triplo dos vencimentos do professor de 20 horas com mesmo nível e titulação. Hoje, o docente em Dedicação Exclusiva recebe o dobro dos vencimentos do professor 20 horas – isto é, o que seria devido ao professor em regime de 40 horas.

Para o professor Luiz Henrique Schuch, do Conselho de Representantes da Adufpel, esse foi o maior ataque do ponto de vista estratégico: “justamente aquele que deveria ser priorizado para estimular docentes a direcionarem sua atuação para projetos acadêmicos de fôlego, com características próprias do compromisso público, em resposta aos principais dramas da população”.

E a precarização não acaba aí: foi ampliada com a remuneração em separado da Retribuição por Titulação (RT), que até 2008 integrava o vencimento básico. Ao longo do tempo, os aumentos incidiram mais sobre a RT do que sobre os vencimentos. “Hoje, para os doutores com Dedicação Exclusiva, a Retribuição por Titulação é 53% da remuneração, isto é, mais da metade. Para os mestres com Dedicação Exclusiva, a Retribuição por Titulação corresponde a 33%, isto é, aproximadamente um terço da remuneração”, explica Elisabete.

Para Schuch, trata-se de uma desestruturação conceitual. “Isto levou à situação atual, em que temos apenas uma tabela em valores nominais desestruturados, cujas proporções são alteradas constantemente, sempre com intencionalidades de constranger determinados segmentos – especialmente aposentados e docentes em início de carreira”, explica.

Além disso, grande parte do(a)s professores(as) terão uma redução salarial significativa a partir de março, devido à Reforma da Previdência: além do desmonte de vários direitos e da defasagem nas remunerações, a alíquota de desconto passará dos atuais 11% para percentuais que vão de 14,5% a 22%.

“Esta reforma é muito diferente das implementadas em governos anteriores, que modificavam tempo de contribuição e idade de aposentadoria, pois mudou tudo: tempo de contribuição, idade mínima, forma de cálculo da aposentadoria”, observa o professor Gihad Mohamad, tesoureiro-geral da Sedufsm, criticando que os servidores públicos tenham passado a ser vistos como os grandes vilões da economia e do crescimento brasileiro.

PNE no vácuo

A valorização dos professores é uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado via Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. O texto, que aborda desde o ensino infantil até a pós-graduação, estabelece metas e estratégias para serem cumpridas até 2024, mas segue longe de ser uma realidade.

Entre as 20 metas, 16 estão estagnadas e 4 tiveram cumprimento parcial, afirma a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. O quadro se agrava diante dos sucessivos cortes no orçamento do Ministério da Educação (MEC) aplicados em 2019, contexto que já era grave após a instauração da Emenda Constitucional 95, do Teto de Gastos.

Também em agosto de 2019, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a anunciar a intenção de alterar algumas metas do Plano, incluindo a que prevê a elevação dos recursos para a Educação para 10% do PIB, alegando que não representam o “bem-estar” para toda a sociedade.

“O ministro faz todo o possível para destruir, e não para melhorar a educação no nosso país. É gravíssimo o que estamos vivendo”, lamenta o presidente da Aprofurg, apontando a crescente visão voltada exclusivamente à lógica mercadológica, acabando com a construção do conhecimento e afetando severamente a democracia e a justiça social.

O professor Cesar Beras, presidente da Sesunipampa, aponta que movimentos como esse do governo federal levam à destruição da educação pública e dos serviços e servidores públicos, e precisam ser detidos. “Por isso, envidamos esforços em nível nacional para a realização de uma greve geral da educação e possivelmente uma greve da educação por tempo indeterminado. O Future-se, a reforma administrativa e o não respeito à autonomia universitária de forma combinada servem ao mercado capitalista ultraliberal e querem destruir o Estado social”, exemplifica o docente, destacando a PEC Emergencial (186/2019), que, entre outras propostas, impõe corte de até 25% nas jornadas e nos salários de trabalhadores e trabalhadoras.

“Tudo isso representa um retrocesso civilizatório, uma reversão no projeto de nação ao padrão de dependência colonial que pensávamos já haver superado, e aponta para uma espécie de ‘uberização’ da contratação do trabalho docente”, acrescenta Schuch, do Conselho de Representantes da Adufpel.

Reestruturação em pauta

A carreira docente em vigor, negociada entre o governo federal e o Proifes, não tem o respaldo do movimento docente e do ANDES-SN. Regida pela lei 12.772/12, foi modificada em 2013 e em 2016, pelas leis 12.863 e 13.325, respetivamente, mediante acordo – atropelando as decisões das assembleias de base da categoria docente.

Por isso, a Reestruturação da Carreira Docente das Instituições Federais de Ensino (IFEs), defendida pelo ANDES-SN, foi aprovada no 30º Congresso da entidade, em 2011, reafirmando a base do PUCRCE.

A proposta está fundamentada em quatro diretrizes: carreira única para todos os professores das IES, independentemente do nível de ensino a que estejam vinculados; restabelecimento da isonomia por meio de remuneração única, com uma única linha no contracheque; e restabelecimento da paridade entre os docentes aposentados e pensionistas com os que estão na ativa; fixação de uma estrutura de carreira dividida em 13 níveis, com degraus de 5% na referência salarial, a serem cumpridos a cada dois anos, o que permite que o professor atinja o topo da carreira em 25 anos.

“Temos que nos organizar local, regional e nacionalmente e ir para as ruas, pois as coisas não mudam sem mobilização e luta”, conclama o professor Engelke, da Furg. “O momento é grave, um avanço autoritário em defesa do capital e o prejuízo total da sociedade brasileira – em especial da classe trabalhadora. Por isso, se baixarmos a cabeça, seremos patrolados e destruídos”.

 

Estado de Greve

O calendário de lutas da categoria docente será movimentado em 2020, que deve iniciar com a construção de uma greve nas instituições federais de ensino em todo o país. A decisão foi tomada durante o 39º Congresso do ANDES-SN, que aconteceu entre os dias 04 e 08 de fevereiro, na USP, em São Paulo. Serão realizados esforços para construir uma greve conjunta com os docentes das instituições estaduais e municipais. Foi deliberado, ainda, que os docentes se somarão à Greve Nacional da Educação de 18 de março, convocada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).

Assembleias de base serão realizadas até 13 de março para decidir sobre a paralisação. Os resultados serão levados à reunião do Setor das Federais do Sindicato Nacional, nos dias 14 e 15 de março.

“O ANDES-SN defende carreira única. Magistério Superior e Ensino Básico, Técnico e Tecnológico atuam ambas no ensino, na pesquisa e na extensão. É possível carreira única e garantia das especificidades da atuação em cada nível de ensino. Esta divisão só serve para fragmentar a categoria docente federal e para ir testando a precarização, como a exigência de ponto eletrônico para a EBTT em algumas instituições”, explica a professora Rúbia Vogt, presidente do ANDES/UFRGS..

A Seção Sindical do ANDES na UFRGS convoca assembleia docente na quarta-feira (11/3), a partir das 16h30, na sala 102 da Faculdade de Educação (Faced), para tratar da pauta:

– Adesão à Greve Nacional do dia 18 de março;

– Construção da greve da categoria docente (indicativo de greve)

 Esta matéria foi elaborada pelo ANDES/UFRGS, com a colaboração da Sedufsm, da Sesunipampa, Aprofurg e Adufpel. O trabalho coletivo  vem sendo realizado semanalmente pelas Seções Sindicais do ANDES-SN no Rio Grande do Sul para divulgar as razões que levaram os docentes a aprovar o Estado de Greve para o ano de 2020.