A proposta de reforma administrativa elaborada pelo governo federal (PEC nº 32/2020) iniciou sua tramitação na Câmara dos Deputados, como noticiamos no boletim InformANDES na UFRGS da última terça-feira (8). O texto aplica a gestão de pessoas do setor privado no setor público. Conforme análise da Assessoria Parlamentar do ANDES-SN, o modelo, justificado pelo ajuste fiscal, segue a lógica do Estado mínimo defendida por Bolsonaro e sua equipe, cuja prioridade não é a melhoria da qualidade dos serviços ou da administração pública, mas o fundamentalismo liberal de “redução da máquina”, do fim dos concursos públicos, dos reajustes salariais e da prestação de serviços à população.
Voltada para os servidores dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e para os três níveis de governo (União, Estados/DF e Municípios), a proposta impacta quem já atua e quem vier a ingressar na administração direta e em empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias. Não atinge diretamente, contudo, os membros do Poder Legislativo e Judiciário, apenas seus servidores, particularmente nas questões relativas a vantagens, estabilidade e sistema de carreiras.
O Magistério federal está entre os mais afetados, pois, conforme o Painel Estatístico de Pessoal (PEP) do Ministério da Economia, um em cada quatro servidores federais na ativa é docente. Ao todo, são 145,3 mil professores e professoras em universidades, institutos federais e escolas, entre os 603 mil servidores federais em atividade.
Retrocessos
Além de destruir direitos trabalhistas e acabar com carreiras, a Proposta de Emenda à Constituição deixa servidores sujeitos a pressões políticas de todos os tipos. O fim da estabilidade no emprego – ou de proteção contra demissão por meio de negociação coletiva ou individual ou de ato normativo que não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada – é outro ataque grave. “Na reforma trabalhista, o princípio da supremacia do negociado sobre o legislado foi elevada ao nível de ‘mantra’, sob o argumento de que a legislação trabalhista é excessivamente protetiva e que deve ser conferida liberdade a patrões e empregados para fixar as condições de trabalho (…). No entanto, aqui, o que se tem é que a PEC 32/2020 visa proibir a própria negociação coletiva ou individual de conceder medidas de proteção (…)”, alerta a assessoria parlamentar.
Além disso, está previsto cumprimento de, no mínimo, dois anos em vínculo de experiência antes da efetivação em cargo. “O individuo aprovado em prova ou provas e títulos, não será nomeado, mas investido em um ‘vínculo’ provisório, que sequer contará para fins de estabilidade. Como poderá, então, esse agente público exercer suas atribuições com a independência requerida? E, já que não integra o serviço público, pois ainda não é servidor, como se dará sua incorporação à Carreira e suas garantias e prerrogativas? São aspectos que a PEC não responde”, aponta o documento da assessoria do Sindicato Nacional.
O texto elaborado pela equipe econômica também suprime detalhes a respeito de convocação de aprovados em concursos: “(…) aquele aprovado em concurso público terá prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego público”. Para a assessoria paramentar, a redação “explicita a noção de desprezo ao conceito de carreira”, visto que poderia viabilizar que aprovados para determinados cargos passassem a ocupar funções distintas daquelas às quais se candidataram.
Ainda conforme a proposta, passam a ser vedadas as concessões de adicionais por tempo de serviço e licença-prêmio – benefícios extintos em 1998 na esfera federal, mas que ainda vigoram por leis estaduais e, com isso, perderiam validade. A extinção do vínculo empregatício e a aposentadoria compulsória aos 75 anos, com extinção automática do vínculo, assim como a possibilidade de haver redução de jornada com redução de remuneração de forma compulsória, também integram o projeto.
Privatização
Para os especialistas que analisaram a PEC, as mudanças podem “vir a ser fonte de mais dificuldades e problemas, em lugar de aperfeiçoar a gestão pública”, e algumas partes do texto configuram “uma total anarquização das relações entre agentes públicos e o Estado”.
A previsão de que União, Estados, Distrito Federal e Municípios poderão, na forma da lei, firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades para a execução de serviços públicos – inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira – é interpretada como “uma enorme ‘brecha’ para a privatização ampla de serviços públicos, inclusive quanto a forma de contratação de pessoal (…)”. De acordo com o documento técnico, modelos baseados nessa concepção já vêm sendo implementados, como no caso das Organizações Sociais, “com péssimos resultados e aumento da corrupção”.
A revogação do § 2º acaba com a previsão constitucional das Escolas de Governo, abrindo, da mesma forma, amplo espaço à sua privatização ou substituição por prestadores de serviços, como instituições acadêmicas privadas.
Ainda, se aprovado o texto, o Presidente da República contaria com ampla liberdade para “desmontar” estruturas sem a apreciação do Legislativo – inclusive, extinguir por decreto cargos públicos vagos, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão, cargos de liderança e assessoramento, funções de confiança e gratificações de caráter não permanente, ocupados ou vagos. “Note-se que o Governo Bolsonaro intentou, no primeiro ano de seu governo, promover ampla extinção de colegiados”, previne a assessoria parlamentar.
Carreiras poderão ser esvaziadas, perdendo atribuições, ou ser fundidas entre si, desde que observada a “estrutura” ou alterada a sua remuneração e requisitos de ingresso. “Salta aos olhos a violência dessa prerrogativa, que coloca o servidor púbico de carreira, ainda que ‘não estável’, como refém de uma ‘gestão de pessoas’ sem compromisso ou sem visão de Estado, mas orientada pela visão neoliberal do Estado mínimo, à qual somente interessa uma ‘pseudo-racionalidade’ econômica, em que o ‘número’ ou quantidade de carreiras precisa ser reduzido, sem qualquer debate aberto com o Parlamento”.
Campanha Em defesa dos Serviços Públicos
O ANDES-SN, juntamente com o Fonasefe e outras entidades, está articulando uma Campanha Nacional em Defesa dos Serviços Públicos, que envolverá ampla divulgação – através de outdoors, lives, vídeos – e, centralmente, mobilização para o Dia Nacional de Lutas, marcado para 30 de setembro.
O Sindicato Nacional também convoca a categoria a participar da consulta on-line da Câmara dos Deputados sobre o projeto da reforma Administrativa, que pode ser acessada aqui. Para isso, docentes devem votar na opção “discordo totalmente”.
Ainda, uma proposta de carta foi elaborada para ser enviada para Executivo e parlamentares, reforçando os perigos das propostas à sociedade brasileira e convocando o Legislativo a votar contra as mudanças. Veja o texto aqui.
Veja abaixo outras mudanças previstas na PEC 32/2020, listadas pela Assessoria Parlamentar do ANDES-SN:
O referido dispositivo trata da vedação a concessão a qualquer servidor ou empregado da administração pública direta ou de autarquia, fundação, empresa pública ou sociedade de economia mista de:
a) férias em período superior a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano;
b) adicionais referentes a tempo de serviço, independentemente da denominação adotada;
c) aumento de remuneração ou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos;
d) licença-prêmio, licença-assiduidade ou outra licença decorrente de tempo de serviço, independentemente da denominação adotada, ressalvada, dentro dos limites da lei, licença para fins de capacitação;
e) redução de jornada sem a correspondente redução de remuneração, exceto se decorrente de limitação de saúde, conforme previsto em lei;
f) aposentadoria compulsória como modalidade de punição;
g) adicional ou indenização por substituição, independentemente da denominação adotada, ressalvada a efetiva substituição de cargo em comissão, função de confiança e cargo de liderança e assessoramento;
h) progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço;
i) parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos e valores em lei, exceto para os empregados de empresas estatais, ou sem a caracterização de despesa diretamente decorrente do desempenho de atividades;
j) a incorporação, total ou parcial, da remuneração de cargo em comissão, função de confiança ou cargo de liderança e assessoramento ao cargo efetivo ou emprego permanente.
A reforma traz cinco formas de contratação, via concurso público ou não, sendo:
1) o vínculo de experiência, como etapa de concurso público;
2) vínculo por prazo determinado;
3) cargo com vínculo por prazo indeterminado;
4) cargo típico de Estado; e
5) cargo de liderança e assessoramento.
Segundo o § 3º, do Artigo 39-A, aplica-se aos empregados públicos o vínculo por prazo determinado ou temporário, admitidos na forma lei, para atender:
a) necessidade temporária decorrente de calamidade, de emergência, de paralisação de atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço;
b) atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos;
c) atividades ou procedimentos sob demanda.
A proposta de reforma administrativa trata de critério de acumulação de cargos no seu art. 5º, que define que poderão manter os vínculos existentes na data de entrada em vigor desta Emenda à Constituição, se houver compatibilidade de horário e observado o disposto no art. 37, caput, inciso XI, da Constituição, os servidores e os empregados públicos que acumulem:
a) dois cargos ou empregos públicos de professor;
b) um cargo de professor com um cargo técnico ou científico; ou
c) dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.